sexta-feira, 1 de maio de 2009

Exílio e linguagem na Budapeste de Chico Buarque






Não há amor de viver sem desespero de viver. (Albert Camus)






De todos os romances – ou novelas – de Chico Buarque, Budapeste (São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 174 p.) é, sem dúvida, o melhor. Seu estilo não mudou muito com relação aos dois anteriores (Estorvo, 1991, e Benjamin, 1995), demonstrando uma constante busca de aperfeiçoamento do modelo de composição utilizado em ambos, que é o de uma narrativa de efeito final centrada na consciência de um protagonista de meia idade, que vive uma situação limite – e algo kafkiana – em sua vida.


Em "Budapeste", o protagonista que vive a situação limite é José Costa, um ghost-writer (escritor fantasma), ou seja, um escritor que vive de escrever para terceiros. Um homem homem que abdica da autoria, da satisfação do amor próprio de artista, que abdica da fama - e da exposição na mídia - para permanecer no confortável anonimato burguês que os rendimentos do seu trabalho lhe permitem. Isto até que dois fatos venham a destruir a aparente felicidade em que vive: a necessidade de escrever a biografia de um alemão que fez fortuna no Brasil e uma passagem acidental por Budapeste, devido ao desvio de curso do avião em que viajava para Frankfurt.


Para escrever a "auto"biofrafia de Kaspar Krabbe, José Costa vê-se na situação de colocar-se imaginariamente na "sua pele" e romancear a sua experiência da descoberta de uma nova língua em um país totalmente estranho. Experiência que não possuía até que o desvio da rota do avião o levou para uma cidade em que a cultura e a língua também lhe eram totalmente estranhas. E é este estranhamento vivido no curto período de um dia que lhe desperta a angústia necessária à escritura da biografia. Entretanto, esta mesma experiência desestabilizará sua vida e seus valores. Ele, que vivia da palavra, descobre-se na condição de nada saber pronunciar ou entender, num estado de afasia semelhante ao do seu filho, que, por tal motivo, era incapaz de amar. E desta experiência surge a obsessão que moverá o protagonista e sua narrativa, de tal forma que abandona sua família e seu trabalho para retornar a Budapeste, lá encontrando Kriska, que lhe ensinará a língua e o acolherá em sua casa e na sua vida – dando-lhe condições de acabar a biografia encomendada e de compreender os motivos da paixão e do sucesso.

Pensando qual seria o principal tema do romance, parece-me ser o mergulho no abismo da linguagem. A favor de tal hipótese concorrem vários motivos recorrentes na obra, tais como o da criação literária, o da autoria e o da originalidade, o do aprendizado da língua, o da sua arbitrariedade e o da relação entre identidade, mercado e linguagem. Além deles, é ainda extremamente significativa a estrutura da obra, que, não por acaso, se apresenta como uma narrativa em abismo. De modo similar à maneira como as imagens se reproduzem infinitamente quando colocamos um espelho frente a outro, uma narrativa é o espelho da outra, assim se reproduzindo infinitamente a mesma história (daí a razão para o jogo de espelhos entre a capa e contracapa do livro). Budapeste, de Chico Buarque, é a imagem refletida de O ginógrafo, de Kaspar Krabbe, que é a imagem refletida de Budapest, de Zsoze Kósta. E ao mergulharmos neste abismo, somos levados a encarar questões que envolvem não somente a filosofia da linguagem e da criação artística, como também a reflexão sobre o nosso mundo contemporâneo regido pela deusa Imagem, mundo de simulacros e realidades virtuais em que nos afogamos, arrastados pelas infernais correntes da indústria cultural.

Mas como nenhuma grande obra pode ser reduzida a um único tema, podemos ainda pensar em outros. E quando considero o diálogo existente entre Budapeste e a obra de Albert Camus, passo a considerar como igualmente importantes os temas do exílio e do absurdo – que, aliás, comentei en passant ao me referir à atmosfera kafkiana existente neste romance e nos dois anteriores (Benjamin e Estorvo). Tal associação não é gratuita. Em Budapeste, o tema do exílio e a figura do estrangeiro lá se encontram – assim como se encontram em L'etrangé (que tanto pode ser traduzido por "estrangeiro" quanto por "estranho") e em diversos contos de sua obra. Aliás, este tema é tão importante na obra de Camus que já se encontra em O avesso e o direito (2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, 109 p.) – profundo livro de estreia de Albert Camus (escrito quando tinha apenas 22 anos!). Veja-se o exemplar trecho do conto "Com amorte na alma":


Cheguei a Praga às seis horas da tarde. Deixei logo a bagagem no guarda-volumes. Tinha, ainda, duas horas para procurar um hotel. E sentia-me inflado por um estranho sentimento de liberdade, porque minhas duas malas não me pesavam mais nos braços. Saí da estação, caminhei pelos jardins e, de repente, me vi lançado em plena Avenida Wenceslas, fervilhante de gente àquela hora. À minha volta, um milhão de seres que tinham vivido até então, e nada transpirara para mim de sua existência. Eles viviam. Eu estava a milhares de quilômetros do país familiar. Não compreendia a língua. Todos andavam depressa. E, ao me ultrapassarem, todos se desligavam de mim. Perdi o passo. [i]

Troque-se a referência à cidade de Praga do conto de Albert Camus pela Budapeste de Chico Buarque e a situação é a mesma: a condição existencial do homem que se descobre estrangeiro em um país de cultura e língua desconhecidas, obrigado a ver-se frente a frente consigo mesmo, com seus medos e com seu “desespero de viver" [ii]. Conforme se lê no conto-ensaio “Entre o sim e o não”, também de Camus, “é a solidão que dá o devido valor a cada coisa", [iii] é ela que, devido à incomunicabilidade e ao estranhamento, leva o homem a ver as coisas em si, sem as máscaras e/ou a fantasia com que as revestimos em nosso cotidiano de falsas e confortáveis certezas.


(...) E a voltar para o hotel à noite, escrevi, de uma só vez, o que se segue (...). Eis-me sem enfeites. Cidade cujos cartazes não sei ler, caracteres estranhos, em que nada de familiar se fixa, sem amigos com quem falar, enfim, sem divertimento. Deste quarto, até onde chegam os ruídos de uma cidade estrangeira, bem sei que nada pode me tirar para levar-me em direção à luz mais delicada de um lar ou de um lugar amado. Vou chamar, gritar? São rostos estrangeiros que surgirão. Igrejas, ouro e incenso, tudo torna a lançar-me numa vida cotidiana na qual minha angústia dá a cada coisa o seu devido valor. E eis que a cortina dos hábitos, o tecido confortável dos gestos e das palavras, em que o coração se acalma, soergue-se lentamente para, enfim, tirar o véu que revela a face macilenta da inquietação. O homem está cara a cara consigo mesmo, desafia-o a ser feliz... [iv]



É inegável que, em Budapeste, as peripécias folhetinescas e o ritmo intenso da narrativa atenuam a carga pesada da dimensão filosófica do texto, tornando-o mais saboroso e digerível. Preço que o artista paga ao mercado – e ao sucesso, diriam José e Zsoze Kósta. Mas não considero que esse hibridismo (ou falta de distinção) entre "alta cultura" e cultura de massa - tão característico da arte e do mundo pós-modernos - desqualifique a obra. Se as peripécias desviam o olhar do leitor mediano (ou medíocre, que não é bem a mesma coisa), sempre mais interessado na intriga do que em questões existenciais ou estéticas, não fazem o mesmo com um leitor experimentado, que poderá saboreá-la aproveitando ambas as dimensões, aparentemente contraditórias: a popular e a erudita. Além disso, tais peripécias – incluindo a surpresa final – têm o mérito de criarem situações profundamente irônicas e capazes de colocar em xeque o dito mercado e a dita sociedade pós-moderna. Sociedade fundada sobre o fetiche da mercadoria e da imagem, mais especialmente sobre o simulacro de brilhantes "realidades virtuais" (e aqui o aparente paradoxo é muito revelador) que se partem e se revelam tolas e enganosas. Enganosas como a “mosca azul” do famoso poema homônimo de Machado de Assis. Exótica mosca cuja máscara de beleza se desfaz quando submetida à dissecação e à análise reveladoras do seu ser interior.


marciano lopes
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Notas:

[i] CAMUS, A. Com a morte na alma. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 73-74.
[ii] _______. Amor pela vida. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 100.
[iii] _______. Entre o sim e o não. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 60-61.
[iv] CAMUS, A. Com a morte na alma. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 79-80.



OBS: O presente texto reúne dois artigos: "No abismo da linguagem" (Novembro, 2004) e "Com a morte na alma: Chico Buarque e a Praga de Alberto Camus" (Dezembro, 2004), ambos publicados na seção Balaio de Letras do extinto site No Meio do Caminho.

Um comentário:

  1. Estupenda crítica sobre esse fantástico abismo que é o livro de Chico Buarque. Já tinha achado ótima essa obra, mas com a crítica de Marciano Lopes elas nos evidenciam coisas que a minha consciência ainda não tinha chegado com seu pequeno feixe de luz.
    Parabéns!

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