Ler os contos de Sérgio Faraco sempre carrega minha alma para o passado e para o Sul. Só falta um bom inverno para completar o astral da leitura, que, nesses casos, vai melhor acompanhada de um vinho e uma lareira, ou um fogo de chão, simplesmente, mais conforme com o espírito da primeira parte dos seus Contos completos. Nela, Faraco reúne os contos de teor regionalista (publicados inicialmente nos livros Hombre e Manilha de espadas), ambientados na região da fronteira, onde se encontram os gaúchos do Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai, terra de muitas lutas, pobreza e solidão. Terra em que, para sobreviver sendo pobre, é necessário ter “algo más que leche em los cojones”. Sim, porque, nestes contos, os principais personagens são os deserdados, os peões, as putas, os borrachos (bêbados) de bolicho e os chibeiros, contrabandistas que lutam no seu dia a dia contra a miséria, a polícia de fronteira e as águas e agruras do rio Uruguai e seu sertão.
Mas não pense, caro leitor, que são contos “bairristas”, extremamente descritivos e repletos de expressões regionais. Neles não há o gosto do exótico, a preocupação primeira em fixar a imagem da região e do tipo local segundo o mito do centauro dos pampas... grande monarca das coxilhas... Não. Se fixa a imagem do gaúcho fronteiriço, o faz na medida em que constitui uma literatura verdadeira, realista e preocupada com o homem, solidária assim como os personagens que retrata. Madura, dialoga com o regionalismo e o mito de forma renovada, não conservadora, recusando a ideologia do gauchismo. Ideologia que Tau Golin desnuda em livro homônimo,[i] para desgosto dos tradicionalistas de CTG.
Mas não pense, caro leitor, que são contos “bairristas”, extremamente descritivos e repletos de expressões regionais. Neles não há o gosto do exótico, a preocupação primeira em fixar a imagem da região e do tipo local segundo o mito do centauro dos pampas... grande monarca das coxilhas... Não. Se fixa a imagem do gaúcho fronteiriço, o faz na medida em que constitui uma literatura verdadeira, realista e preocupada com o homem, solidária assim como os personagens que retrata. Madura, dialoga com o regionalismo e o mito de forma renovada, não conservadora, recusando a ideologia do gauchismo. Ideologia que Tau Golin desnuda em livro homônimo,[i] para desgosto dos tradicionalistas de CTG.
O mesmo realismo ocorre no plano estilístico, pois os textos são curtos, flagrantes do cotidiano reveladores da alma, com uma linguagem simples, direta (mas sem preocupações vanguardistas), em que os “regionalismos” lingüísticos entram na medida exata, sem exageros e exotismos. Tanto é assim, que o estilo e a temática principal se mantêm nas outras duas partes da obra: na segunda, cujos personagens são crianças e/ou adolescentes, e na terceira, que nos remete ao meio urbano, em geral ambientadas em Porto Alegre (ai, que saudades...). E novamente Faraco se sai muito bem, pois transita pela literatura infanto-juvenil e pelo conto urbano, cuja ambientação recorrentemente nos remete a locais característicos de Porto Alegre (como o Café Paris, o Majestic Hotel, os bares do centro da cidade, o Parque da Redenção) sem cair nos estereótipos de cada gênero, ou seja, sem idealizar a infância em narrativas de teor didático, utilitaristas conforme o “bom gosto burguês”[ii], e nem cair no bairrismo, no retrato da cor local porto-alegrense. Conforme as palavras de Miguel Sanches Neto (que recusa, com boa razão, a expressão “regionalismo” para os contos), postas na orelha do livro:
Os contos da segunda parte remetem também a um tempo mítico, já não mais ligado a um espaço de exceção. São histórias que focalizam a infância, seus dramas e valores em saudável desarmonia com o modus vivendi dos adultos. Não é uma forma de concepção idealizada dessa fase da vida, pois a sensação de perda de um país íntimo marca essas histórias em que a sexualidade aparece naturalmente. A solidão também se manifesta nesse segmento do livro [...]. São imagens em que a infância, desenrolando-se em contato muitas vezes brutal com a realidade, é vista como o momento de aprender as leis da sobrevivência.
Nessas duas etapas temos um espaço e um tempo deslocados. A terceira coloca em cena o homem na cidade grande, tentando ludibriar a solidão. O contista se dedica a essa fauna que, perdida no abismo entre o passado e o presente, procura recompensar o sentimento de incompletude através da amizade e principalmente da relação sexual. Desconheço, na literatura brasileira contemporânea, escritor que trate de forma tão contundente e, ao mesmo tempo, tão natural o encontro erótico. Para Faraco o amor é muito mais do que encontro de dois corpos em busca do prazer, mas a maneira de se solidarizar com quem também sofre as asperezas da vida.
Nessas duas etapas temos um espaço e um tempo deslocados. A terceira coloca em cena o homem na cidade grande, tentando ludibriar a solidão. O contista se dedica a essa fauna que, perdida no abismo entre o passado e o presente, procura recompensar o sentimento de incompletude através da amizade e principalmente da relação sexual. Desconheço, na literatura brasileira contemporânea, escritor que trate de forma tão contundente e, ao mesmo tempo, tão natural o encontro erótico. Para Faraco o amor é muito mais do que encontro de dois corpos em busca do prazer, mas a maneira de se solidarizar com quem também sofre as asperezas da vida.
E falando no encontro erótico, que perpassa as três partes da obra e é tematizado sem os traumas do pecado que assombra a nossa cultura judaico-cristã (o que é uma grande virtude, principalmente nos contos da segunda parte, visto serem narrativas mais voltadas para um público infanto-juvenil), gostaria de destacar a obra-prima que é “Dançar tango em Porto Alegre”. [iii] Nele, um encontro amoroso, que ocorre no compartimento de um trem, entre um homem já maduro e precocemente envelhecido pelas agruras da vida (e que até já havia esquecido de seu sexo) e uma mulher desesperada, cujo marido se encontrava há muito tempo no leito, esperando a morte, é descrito com direito a uma cena de sexo anal... Mas em nenhum momento a narrativa cai na literatura barata e muito menos beira a pornografia, revelando-se como um momento de extrema dor e beleza em que o sexo surge com toda a sua força de Eros em oposição a Tanatos, em muito lembrando, como observa Laury Maciel em seu artigo “Um escritor em busca do reverso das coisas”[iv], o belíssimo filme “Houve uma vez um verão, dirigido por Roberto Mulligan, em que a mulher de um oficial que está na guerra, ao receber a notícia da morte do marido, entrega-se a um adolescente, iniciando-o sexualmente”. Em suma, grande literatura, digna do humanismo dos grandes escritores russos, tais como Tolstoi, Dostoiewski e Gogol, que muito certamente estão entre os favoritos de Sergio Faraco[v].
Marciano Lopes
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[i] Tau Golin. A ideologia do gauchismo. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1983.
[ii] Para saber mais sobre a representação da infância nos contos de Sergio Faraco, veja o artigo “O conto contemporâneo gaúcho: em tempos de desconstrução do conceito de infância”, de Flávia Brochetto Ramos e Marli Cristina Tasca, publicado na revista Especulo: http://www.ucm.es/info/especulo/numero25/infancia.html
[iii] Este conto foi publicado inicialmente em A dama do Bar Nevada e depois no livro homônimo, coletânea de contos que recebeu, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio de melhor obra de ficção em 1998. A citação é de: Contos completos. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2004. 336 p.
[iv] Artigo publicado no fascículo “Sergio Faraco”, n. 11, da coleção Autores Gaúchos, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1986, p. 14-17.
[v] Para saber mais sobre Sergio Faraco e sua obra, vá ao seguinte endereço: http://pessoal.portoweb.com.br/sergiofaraco/
[i] Tau Golin. A ideologia do gauchismo. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1983.
[ii] Para saber mais sobre a representação da infância nos contos de Sergio Faraco, veja o artigo “O conto contemporâneo gaúcho: em tempos de desconstrução do conceito de infância”, de Flávia Brochetto Ramos e Marli Cristina Tasca, publicado na revista Especulo: http://www.ucm.es/info/especulo/numero25/infancia.html
[iii] Este conto foi publicado inicialmente em A dama do Bar Nevada e depois no livro homônimo, coletânea de contos que recebeu, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio de melhor obra de ficção em 1998. A citação é de: Contos completos. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2004. 336 p.
[iv] Artigo publicado no fascículo “Sergio Faraco”, n. 11, da coleção Autores Gaúchos, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1986, p. 14-17.
[v] Para saber mais sobre Sergio Faraco e sua obra, vá ao seguinte endereço: http://pessoal.portoweb.com.br/sergiofaraco/
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