quinta-feira, 21 de maio de 2009

Com a alma no Sul - uma leitura dos "Contos Completos" de Ségio Faraco


Ler os contos de Sérgio Faraco sempre carrega minha alma para o passado e para o Sul. Só falta um bom inverno para completar o astral da leitura, que, nesses casos, vai melhor acompanhada de um vinho e uma lareira, ou um fogo de chão, simplesmente, mais conforme com o espírito da primeira parte dos seus Contos completos. Nela, Faraco reúne os contos de teor regionalista (publicados inicialmente nos livros Hombre e Manilha de espadas), ambientados na região da fronteira, onde se encontram os gaúchos do Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai, terra de muitas lutas, pobreza e solidão. Terra em que, para sobreviver sendo pobre, é necessário ter “algo más que leche em los cojones”. Sim, porque, nestes contos, os principais personagens são os deserdados, os peões, as putas, os borrachos (bêbados) de bolicho e os chibeiros, contrabandistas que lutam no seu dia a dia contra a miséria, a polícia de fronteira e as águas e agruras do rio Uruguai e seu sertão.
Mas não pense, caro leitor, que são contos “bairristas”, extremamente descritivos e repletos de expressões regionais. Neles não há o gosto do exótico, a preocupação primeira em fixar a imagem da região e do tipo local segundo o mito do centauro dos pampas... grande monarca das coxilhas... Não. Se fixa a imagem do gaúcho fronteiriço, o faz na medida em que constitui uma literatura verdadeira, realista e preocupada com o homem, solidária assim como os personagens que retrata. Madura, dialoga com o regionalismo e o mito de forma renovada, não conservadora, recusando a ideologia do gauchismo. Ideologia que Tau Golin desnuda em livro homônimo,
[i] para desgosto dos tradicionalistas de CTG.

O mesmo realismo ocorre no plano estilístico, pois os textos são curtos, flagrantes do cotidiano reveladores da alma, com uma linguagem simples, direta (mas sem preocupações vanguardistas), em que os “regionalismos” lingüísticos entram na medida exata, sem exageros e exotismos. Tanto é assim, que o estilo e a temática principal se mantêm nas outras duas partes da obra: na segunda, cujos personagens são crianças e/ou adolescentes, e na terceira, que nos remete ao meio urbano, em geral ambientadas em Porto Alegre (ai, que saudades...). E novamente Faraco se sai muito bem, pois transita pela literatura infanto-juvenil e pelo conto urbano, cuja ambientação recorrentemente nos remete a locais característicos de Porto Alegre (como o Café Paris, o Majestic Hotel, os bares do centro da cidade, o Parque da Redenção) sem cair nos estereótipos de cada gênero, ou seja, sem idealizar a infância em narrativas de teor didático, utilitaristas conforme o “bom gosto burguês”[ii], e nem cair no bairrismo, no retrato da cor local porto-alegrense. Conforme as palavras de Miguel Sanches Neto (que recusa, com boa razão, a expressão “regionalismo” para os contos), postas na orelha do livro:

Os contos da segunda parte remetem também a um tempo mítico, já não mais ligado a um espaço de exceção. São histórias que focalizam a infância, seus dramas e valores em saudável desarmonia com o modus vivendi dos adultos. Não é uma forma de concepção idealizada dessa fase da vida, pois a sensação de perda de um país íntimo marca essas histórias em que a sexualidade aparece naturalmente. A solidão também se manifesta nesse segmento do livro [...]. São imagens em que a infância, desenrolando-se em contato muitas vezes brutal com a realidade, é vista como o momento de aprender as leis da sobrevivência.
Nessas duas etapas temos um espaço e um tempo deslocados. A terceira coloca em cena o homem na cidade grande, tentando ludibriar a solidão. O contista se dedica a essa fauna que, perdida no abismo entre o passado e o presente, procura recompensar o sentimento de incompletude através da amizade e principalmente da relação sexual. Desconheço, na literatura brasileira contemporânea, escritor que trate de forma tão contundente e, ao mesmo tempo, tão natural o encontro erótico. Para Faraco o amor é muito mais do que encontro de dois corpos em busca do prazer, mas a maneira de se solidarizar com quem também sofre as asperezas da vida.

E falando no encontro erótico, que perpassa as três partes da obra e é tematizado sem os traumas do pecado que assombra a nossa cultura judaico-cristã (o que é uma grande virtude, principalmente nos contos da segunda parte, visto serem narrativas mais voltadas para um público infanto-juvenil), gostaria de destacar a obra-prima que é “Dançar tango em Porto Alegre”. [iii] Nele, um encontro amoroso, que ocorre no compartimento de um trem, entre um homem já maduro e precocemente envelhecido pelas agruras da vida (e que até já havia esquecido de seu sexo) e uma mulher desesperada, cujo marido se encontrava há muito tempo no leito, esperando a morte, é descrito com direito a uma cena de sexo anal... Mas em nenhum momento a narrativa cai na literatura barata e muito menos beira a pornografia, revelando-se como um momento de extrema dor e beleza em que o sexo surge com toda a sua força de Eros em oposição a Tanatos, em muito lembrando, como observa Laury Maciel em seu artigo “Um escritor em busca do reverso das coisas”[iv], o belíssimo filme “Houve uma vez um verão, dirigido por Roberto Mulligan, em que a mulher de um oficial que está na guerra, ao receber a notícia da morte do marido, entrega-se a um adolescente, iniciando-o sexualmente”. Em suma, grande literatura, digna do humanismo dos grandes escritores russos, tais como Tolstoi, Dostoiewski e Gogol, que muito certamente estão entre os favoritos de Sergio Faraco[v].

Marciano Lopes
______________________
[i] Tau Golin. A ideologia do gauchismo. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1983.
[ii] Para saber mais sobre a representação da infância nos contos de Sergio Faraco, veja o artigo “O conto contemporâneo gaúcho: em tempos de desconstrução do conceito de infância”, de Flávia Brochetto Ramos e Marli Cristina Tasca, publicado na revista Especulo: http://www.ucm.es/info/especulo/numero25/infancia.html
[iii] Este conto foi publicado inicialmente em A dama do Bar Nevada e depois no livro homônimo, coletânea de contos que recebeu, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio de melhor obra de ficção em 1998. A citação é de: Contos completos. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2004. 336 p.
[iv] Artigo publicado no fascículo “Sergio Faraco”, n. 11, da coleção Autores Gaúchos, Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1986, p. 14-17.
[v] Para saber mais sobre Sergio Faraco e sua obra, vá ao seguinte endereço: http://pessoal.portoweb.com.br/sergiofaraco/

domingo, 17 de maio de 2009

A arte de Nelson Alexandre


AS MARGARIDAS DO MONTE FUJI


Preciso ouvir o sopro das palavras
Entrando no ouvido
Pra não ficar fingindo o tempo todo.

Fico de joelhos diante à porta
De entrada da minha casa.
Vendo a luz do sol penetrar na sala
Dando vida aos tijolos
E a tinta na parede.

Sobre o muro
Edifícios de lata de cerveja
Formam uma metrópole sem essência
Com Platão levando a poesia
Pros confins do esgoto.

Na estrada de terra em frente ao lar
Doze cachorros loucos
Levantam poeira vermelha
Do chão numa luta sangrenta.

Fico em pé
Pisando com os pés na terra
Feito um monumento inanimado
Com a gravidade empurrando a minha coluna
Em direção ao solo
Como uma mola sob a pressão
Dos sentidos.

Uma boneca que desnuda um rosto sem face
Passeia de mãos dadas comigo
Enquanto o monte sai de sua base
No meio do campo das margaridas.

Tento segurar o céu
Que despenca em nossa direção.
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:
Nelson Alexandre
:
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Poema retirado de seu blog: http://encruado.zip.net
Para ouvir dois poemas seus, veja Dois poemas de Nelson Alexandre: Prece do cão maluco & Dançar leva longe demais no blog do Projeto Outras Palavras.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A Contrapelo


Iluminura que abre a terceira parte de meu livro
A Contrapelo (Maringá:Clichetec, 2007)
Poema: Marciano Lopes
Arte: Xavier

Abaixo, mais alguns poemas desta parte do livro, os quais também se encontram no Cd A Contrapelo, que o acompanha.



LIÇõES DE HISTÓRIA


Lição 1: Introdução


Nossa história começa com os índios,
depois termina com eles.

Lição 2: Natureza e civilização ou Florestapera

FLORESTAPERA
RESTAPERA
ESTAPERA
TAPERA
PERA
ERA

Lição 3: Cidadania sempre alerta ou Pataxó pegou fogo


EXTRA ! EXTRA !
PATAXÓ PEGA FOGO EM BRASÍLIA!

Meretíssimo !
os garotos são de família
e acidentes acontecem
pra quem dorme no ponto.

Além do mais
era só um índio
só...

MIGALHAS

bebia sua vida num gole gargalo
com jornal de lã na calçada-divã
vestia saída num beco soberbo
de fome subúrbia
travessa sacia sua sede de pão

meio-dia fomenta milhares de carros
com tal sede insana faminta de grana
pro gole final que deu ali mesmo
de magna angústia
tomou batida e encheu a cara de chão

encheu a esquina
de cena
agora é a vida

que

pinga

que

pena
[1]


Milhões de migalhas
encobrem a mesa.

Milhões de migalhas
não fazem um pão.


Milhões de migalhas
não fazem nem mesmo
uma fatia.

Milhões de migalhas
são apenas mais sujeira
no dia a dia.

____________________
[1] O texto em itálico é um poema do amigo Sansão (Fábio Freitas), cujo título é “Pão e pinga (A fome e a embriaguez)” e foi gentilmente cedido para acompanhar meu poema "Migalhas". Para ouvir "Migalhas", "Lições de história" e "O poeta gauche e os arautos do Senhor", veja "3 poemas do Cd A Contrapelo, de Marciano Lopes".

Para adquirir a obra, contate o autor: etlopes@hotmail.com

domingo, 10 de maio de 2009

Urbanidade

Iluminura que abre a segunda parte de meu livro
A contrapelo (Maringá: Clichetec, 2007).
Poema: Marciano Lopes -
Arte: Xavier
Para adquirir o livro, contate o autor: etlopes@hotmail.com

Abaixo, mais dois poemas desta parte do livro:
:
:

ALEGRIA ALEGRIA !



Caminhando contra o vento
sem lenço e sem documento,
no sol de quase dezembro, eu vou...
(Alegria alegria – Caetano Veloso)


Caminhando contra o tempo
com lenço e com documento,
estilhaçado em mil cacos, eu vou...

Correndo vai meu presente
com o coração em descompasso,
NO LIMITE do desejo, eu vou...

Tonteio com tantas mil luzes,
mas não perco minha pose.
Sorrio só pro BIG BROTHER
e vou!

Tri doidão, muito doidão
corro louco só pra ver
o trio da alegria passar!
E vou!!!

Eu vou sim... Eu vou sim... Eu vou sim...

(só não sei bem pra onde ...)
:
:

RETIFICAÇÃO

Dizem que si hay gobierno yo soy contra.
Mas não é nem assim nem assado.
Eu só sou é meio avesso
a enquadramentos de comum estado.

(Onde civil cão que morda e ladre?!)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Diário de Bordo: "A contrapelo" por Ana Guadalupe

Com sensibilidade, Ana aborda a nau da poesia a contrapelo e de modo sutil intui (e sugere) uma narrativa que se dissimula sobre as águas turvas do texto... Crítica que se faz poética, poesia crítica.


Obs: todos os poemas selecionados acima por Ana são de "Ressurgências", 1a parte do livro A contrapelo.


terça-feira, 5 de maio de 2009

Ressurgências

Iluminura que abre a primeira parte de meu livro A Contrapelo (Maringá: Clichetec, 2007).
Arte: Mario donLeal e Gislaine Pagotto, com a colaboração de Graziele Queiroz.
Poema: Marciano Lopes
Para adquir o livro/cd, entre em contato com o autor: etlopes@hotmail.com

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Exílio e linguagem na Budapeste de Chico Buarque






Não há amor de viver sem desespero de viver. (Albert Camus)






De todos os romances – ou novelas – de Chico Buarque, Budapeste (São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 174 p.) é, sem dúvida, o melhor. Seu estilo não mudou muito com relação aos dois anteriores (Estorvo, 1991, e Benjamin, 1995), demonstrando uma constante busca de aperfeiçoamento do modelo de composição utilizado em ambos, que é o de uma narrativa de efeito final centrada na consciência de um protagonista de meia idade, que vive uma situação limite – e algo kafkiana – em sua vida.


Em "Budapeste", o protagonista que vive a situação limite é José Costa, um ghost-writer (escritor fantasma), ou seja, um escritor que vive de escrever para terceiros. Um homem homem que abdica da autoria, da satisfação do amor próprio de artista, que abdica da fama - e da exposição na mídia - para permanecer no confortável anonimato burguês que os rendimentos do seu trabalho lhe permitem. Isto até que dois fatos venham a destruir a aparente felicidade em que vive: a necessidade de escrever a biografia de um alemão que fez fortuna no Brasil e uma passagem acidental por Budapeste, devido ao desvio de curso do avião em que viajava para Frankfurt.


Para escrever a "auto"biofrafia de Kaspar Krabbe, José Costa vê-se na situação de colocar-se imaginariamente na "sua pele" e romancear a sua experiência da descoberta de uma nova língua em um país totalmente estranho. Experiência que não possuía até que o desvio da rota do avião o levou para uma cidade em que a cultura e a língua também lhe eram totalmente estranhas. E é este estranhamento vivido no curto período de um dia que lhe desperta a angústia necessária à escritura da biografia. Entretanto, esta mesma experiência desestabilizará sua vida e seus valores. Ele, que vivia da palavra, descobre-se na condição de nada saber pronunciar ou entender, num estado de afasia semelhante ao do seu filho, que, por tal motivo, era incapaz de amar. E desta experiência surge a obsessão que moverá o protagonista e sua narrativa, de tal forma que abandona sua família e seu trabalho para retornar a Budapeste, lá encontrando Kriska, que lhe ensinará a língua e o acolherá em sua casa e na sua vida – dando-lhe condições de acabar a biografia encomendada e de compreender os motivos da paixão e do sucesso.

Pensando qual seria o principal tema do romance, parece-me ser o mergulho no abismo da linguagem. A favor de tal hipótese concorrem vários motivos recorrentes na obra, tais como o da criação literária, o da autoria e o da originalidade, o do aprendizado da língua, o da sua arbitrariedade e o da relação entre identidade, mercado e linguagem. Além deles, é ainda extremamente significativa a estrutura da obra, que, não por acaso, se apresenta como uma narrativa em abismo. De modo similar à maneira como as imagens se reproduzem infinitamente quando colocamos um espelho frente a outro, uma narrativa é o espelho da outra, assim se reproduzindo infinitamente a mesma história (daí a razão para o jogo de espelhos entre a capa e contracapa do livro). Budapeste, de Chico Buarque, é a imagem refletida de O ginógrafo, de Kaspar Krabbe, que é a imagem refletida de Budapest, de Zsoze Kósta. E ao mergulharmos neste abismo, somos levados a encarar questões que envolvem não somente a filosofia da linguagem e da criação artística, como também a reflexão sobre o nosso mundo contemporâneo regido pela deusa Imagem, mundo de simulacros e realidades virtuais em que nos afogamos, arrastados pelas infernais correntes da indústria cultural.

Mas como nenhuma grande obra pode ser reduzida a um único tema, podemos ainda pensar em outros. E quando considero o diálogo existente entre Budapeste e a obra de Albert Camus, passo a considerar como igualmente importantes os temas do exílio e do absurdo – que, aliás, comentei en passant ao me referir à atmosfera kafkiana existente neste romance e nos dois anteriores (Benjamin e Estorvo). Tal associação não é gratuita. Em Budapeste, o tema do exílio e a figura do estrangeiro lá se encontram – assim como se encontram em L'etrangé (que tanto pode ser traduzido por "estrangeiro" quanto por "estranho") e em diversos contos de sua obra. Aliás, este tema é tão importante na obra de Camus que já se encontra em O avesso e o direito (2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, 109 p.) – profundo livro de estreia de Albert Camus (escrito quando tinha apenas 22 anos!). Veja-se o exemplar trecho do conto "Com amorte na alma":


Cheguei a Praga às seis horas da tarde. Deixei logo a bagagem no guarda-volumes. Tinha, ainda, duas horas para procurar um hotel. E sentia-me inflado por um estranho sentimento de liberdade, porque minhas duas malas não me pesavam mais nos braços. Saí da estação, caminhei pelos jardins e, de repente, me vi lançado em plena Avenida Wenceslas, fervilhante de gente àquela hora. À minha volta, um milhão de seres que tinham vivido até então, e nada transpirara para mim de sua existência. Eles viviam. Eu estava a milhares de quilômetros do país familiar. Não compreendia a língua. Todos andavam depressa. E, ao me ultrapassarem, todos se desligavam de mim. Perdi o passo. [i]

Troque-se a referência à cidade de Praga do conto de Albert Camus pela Budapeste de Chico Buarque e a situação é a mesma: a condição existencial do homem que se descobre estrangeiro em um país de cultura e língua desconhecidas, obrigado a ver-se frente a frente consigo mesmo, com seus medos e com seu “desespero de viver" [ii]. Conforme se lê no conto-ensaio “Entre o sim e o não”, também de Camus, “é a solidão que dá o devido valor a cada coisa", [iii] é ela que, devido à incomunicabilidade e ao estranhamento, leva o homem a ver as coisas em si, sem as máscaras e/ou a fantasia com que as revestimos em nosso cotidiano de falsas e confortáveis certezas.


(...) E a voltar para o hotel à noite, escrevi, de uma só vez, o que se segue (...). Eis-me sem enfeites. Cidade cujos cartazes não sei ler, caracteres estranhos, em que nada de familiar se fixa, sem amigos com quem falar, enfim, sem divertimento. Deste quarto, até onde chegam os ruídos de uma cidade estrangeira, bem sei que nada pode me tirar para levar-me em direção à luz mais delicada de um lar ou de um lugar amado. Vou chamar, gritar? São rostos estrangeiros que surgirão. Igrejas, ouro e incenso, tudo torna a lançar-me numa vida cotidiana na qual minha angústia dá a cada coisa o seu devido valor. E eis que a cortina dos hábitos, o tecido confortável dos gestos e das palavras, em que o coração se acalma, soergue-se lentamente para, enfim, tirar o véu que revela a face macilenta da inquietação. O homem está cara a cara consigo mesmo, desafia-o a ser feliz... [iv]



É inegável que, em Budapeste, as peripécias folhetinescas e o ritmo intenso da narrativa atenuam a carga pesada da dimensão filosófica do texto, tornando-o mais saboroso e digerível. Preço que o artista paga ao mercado – e ao sucesso, diriam José e Zsoze Kósta. Mas não considero que esse hibridismo (ou falta de distinção) entre "alta cultura" e cultura de massa - tão característico da arte e do mundo pós-modernos - desqualifique a obra. Se as peripécias desviam o olhar do leitor mediano (ou medíocre, que não é bem a mesma coisa), sempre mais interessado na intriga do que em questões existenciais ou estéticas, não fazem o mesmo com um leitor experimentado, que poderá saboreá-la aproveitando ambas as dimensões, aparentemente contraditórias: a popular e a erudita. Além disso, tais peripécias – incluindo a surpresa final – têm o mérito de criarem situações profundamente irônicas e capazes de colocar em xeque o dito mercado e a dita sociedade pós-moderna. Sociedade fundada sobre o fetiche da mercadoria e da imagem, mais especialmente sobre o simulacro de brilhantes "realidades virtuais" (e aqui o aparente paradoxo é muito revelador) que se partem e se revelam tolas e enganosas. Enganosas como a “mosca azul” do famoso poema homônimo de Machado de Assis. Exótica mosca cuja máscara de beleza se desfaz quando submetida à dissecação e à análise reveladoras do seu ser interior.


marciano lopes
_______________________________


Notas:

[i] CAMUS, A. Com a morte na alma. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 73-74.
[ii] _______. Amor pela vida. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 100.
[iii] _______. Entre o sim e o não. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 60-61.
[iv] CAMUS, A. Com a morte na alma. In: O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 79-80.



OBS: O presente texto reúne dois artigos: "No abismo da linguagem" (Novembro, 2004) e "Com a morte na alma: Chico Buarque e a Praga de Alberto Camus" (Dezembro, 2004), ambos publicados na seção Balaio de Letras do extinto site No Meio do Caminho.