quinta-feira, 30 de abril de 2009

Homenagem à poesia do Mario Pirata

URGÊNCIA


É preciso mexer no mecanismo dos ventos
incendiar o medo (...)
Mas sobretudo é preciso soltar
a fera de um novo amor.


(Mario Pirata)




É preciso afugentar o mofo e os fantasmas,
tocar na vitrola um mágico Valença,
dançar um baioque e levantar a poeira
cimentada pela memória.

É preciso amar, bater o pé e cantar
feito pitangueira balanceando ao vento,
depois dançar na chuva alegre rancheira
rodopiando futuro adentro!

É preciso sentar em roda e matear
ao calor da fogueira cheirosa chaleira
relinchando nos peitos calientes folguedos
encharcados de sonhos, bravatas e beijos.

É preciso resgatar antigos diários,
trapos, cacos, retratos, fotos e farrapos,
velhas lembranças, casos, segredos e mitos
para salvá-los do imundo pó da história.



marciano lopes
____________
Para ouvir o poema musicado por Dré Camargo, veja Poetas No Meio do Caminho e uma homenagem à poesia de Mario Pirata

quarta-feira, 29 de abril de 2009

poema para a mulher que um dia virá

mas então tá, não serás Luz Azul (anjo azul voando na tempestade com cianeto nos olhos agridoces voltados para o passado de ruínas e planos) nem Luz Vermelha (bandida medéia macabéica da luz vermelha passageira da agonia) mas todas as luzes juntas, arco-íris de tons e entretons cambiantes camaleoa fera suave que morde e lambe a ferida pra que a carne regenere e gere novas lutas e lidas velas veias ventos e eventos de caminhos permissivos a serem singrados sangrados percorridos transgredidos implodidos pra que as pedras voem arrebentando todos os muros com mil murros da mais pura e suja poesia joantonioplínicoferreiradagulla estranguladora dos monstros que nos cercam e sufocam com suas panças de mamutessauros envelhecidos em barris de barros adâmicos intolerantes para quem qualquer e(r)va é amargo veneno ah! tolos! doce veneno que só se compara ao agridoce sábio sabor de miríades de liliths cambiantes em feraflor! que venha esse amor que nos carregue...

poema: marciano lopes

foto: jerry rossato - do seu site http://www.experimentario.com.br/

GRAFITE (haikai)


Rua estreita e suja.
A criança e a parede
com um sorriso rindo!
(marciano lopes)

LIBERDADE E IMAGINAÇÃO NA MPB: da seleção da censura à seleção do mercado - por Marciano Lopes

(...) Existe o prazer especial da decifração, vulgarizado de uma maneira fenomenal entre os charadistas e amigos da espécie, (...) Os mestres do apólogo, os catedráticos do símbolo, com os seus golpes esquerdos de estilo, com as suas soberbas tintas de epigrama dão para nos entreter séculos e séculos de leitura! É um encanto perseguir-lhes (...) a dubiedade esperta, contida nas frases neutras, ao saber ao mesmo tempo de Deus Nosso Senhor e de Satanás. (Raul Pompéia)


Outro dia estava ouvindo Ivan Lins e peguei-me a pensar sobre quanta diferença existe entre a MPB de hoje e a dos anos 60 ao final dos 80. Que diferença principalmente na qualidade das letras! Antes elas eram muito mais bem trabalhadas esteticamente e mais profundas. Não eram poucas as que permaneciam de pé mesmo quando lhes tirávamos a música. E por mais perigosa que seja a seguinte idéia, atrevo-me a afirmar que a repressão ditatorial contribuiu para a criação de letras mais inteligentes. Ia dizendo críticas, mas nisso ia cometendo um grave engano, pois as letras de hoje são muito críticas, sim; mas pouco inteligentes na exploração da palavra, de seu potencial plurissignificativo e subversivo da linguagem e dos valores nela impressos. Para exemplificar, veja-se o rap, o funk e o atual pop-rock. Seja como for, nada mais exemplar do que o rap para demonstrar como atualmente toma-se a palavra no seu uso cotidiano e já gasto, como se ela fosse transparente, como se cada uma delas não tivesse uma diversidade de significados muitas vezes contraditórios e reveladores escondidos por detrás da falsa aparência de univocidade que o uso cotidiano – sem reflexão – cria.
“Abre alas” (1974), “Somos todos iguais nesta noite” (1977), “Bandeira do Divino”, “Cartomante”, “Depois dos temporais” (1983), todas de Ivan Lins e seu grande parceiro Vítor Martins (o responsável pelas letras!), são canções maravilhosas que se mantêm vivas até hoje apesar do sentido político que possuíam. Mesmo passado o momento histórico em que foram criadas, estas composições ainda são significativas para quem não viveu e/ou não sabe daqueles duros dias porque as letras tratam de fatos e coisas cirscuntanciais (datadas historicamente) valendo-se da dubiedade da metáfora e da alegoria. Em “Somos todos iguais nesta noite”, Vítor Martins utiliza a metáfora da “noite”, cuja conotação significa um período de dor, trevas e opressão, e a alegoria do “circo” como análogo ao “espetáculo da vida” – então considerada como um jogo arriscado. Passado o momento histórico em que foi criada, a alegoria do circo, no qual o “chicote dos domadores / e o rufar dos tambores” apontavam para a opressão da ditadura militar, passa a significar a opressão de qualquer outro governo que no lugar da liberdade e do respeito à vida faça a política do pão e do circo, assim como na Roma dos césares, que tem nas ruínas do Coliseu a lembrança alegórica desta barbárie (lembrem do filme “O gladiador”). O mesmo acontece com “Bandeira do Divino”. Passado o momento histórico que levava o ouvinte a interpretar a figura da “bandeira” como significando a “bandeira pátria”, a “luta” contra a ditadura e a “causa” da liberdade, que deveria ser levada de casa em casa juntamente com a mensagem de amor e esperança, permanece o seu significado religioso, a sua dimensão de resgate e recriação da cultura popular das folias de reis.
Sem dúvida, o mestre no uso da metáfora e da alegoria era o Chico. São tantos os exemplos: “Roda-Viva”, “Construção, “Cálice”, “Rosa-dos-ventos”, “Bye bye Brasil”, “Vai passar”... Até quando não usava a metáfora, o símbolo e a alegoria, sabia explorar com maestria o duplo sentido possível de um discurso conforme o contexto em que é produzido, como é o caso de músicas como “Apesar de você”, em que o responsável pela dor (o “você” da canção) pode ser entendido como o ser amado que nos oprime, mas que, na época, também era compreendido por muitos como o presidente Emílio Garrastazu Médice. Em “Vai passar”, assim como na antológica “Rancho da goiabada” de Aldir Blanc (grande parceiro e letrista de João Bosco, assim como Vítor Martins foi de Ivan Lins), os mascarados que desfilam pela avenida no carnaval representam os pobres, sonhadores e desvalidos deste Brasil surreal. Em “Construção”, cada palavra proparoxítona que termina os versos é mais um tijolo a contribuir para o embotamento do operário que não consegue se “construir”, ou seja, se politizar (assim como o “Operário em construção” de Vinícius de Moraes). “Roda-Viva” permanece atualíssima como alegoria da máquina devoradora do show business. “Bye bye Brasil” (música-tema do filme homônimo dirigido por Cacá Diegues) ainda é uma alegoria atual da modernidade selvagem que avança pelo interior do Brasil que não chegou ao século XX. Felizmente, entre elas, “Cálice” já não permanece atual, na medida em que tudo (?!) pode ser dito sem que se desliguem os microfones do estádio, do rádio ou da TV... Mas quando tudo pode ser dito desde que encontre seu nicho no mercado, como fica o valor da liberdade de expressão, o valor da palavra medida e pesada, da palavra que poderia levar o destinatário a pensar, a perder a ingenuidade frente a linguagem e tornar-se realmente um ser crítico, capaz de desenvolver um raciocínio abstrato e encarar de frente a complexidade da vida? Ao que parece, tal palavra não tem lugar no mercado, pois não vende, não serve ao entretenimento e à diversão... E quando tal palavra encontra seu espaço, parece misturar-se indistintamente à geléia geral. Há, claro, os independentes, mas o acesso a sua produção já requer um bom nível de cultura e informação assim como um esforço de pesquisa consideráveis... Daí, pergunto: que liberdade é essa que nos emburrece e nos anestesia? Não estou defendendo a idéia de que a censura é boa, mas, cá entre nós, nem toda liberdade é propícia à arte, nem toda liberdade rima com felicidade...
marciano lopes

Postal Poético: Gigante Adormecido (Sansão/Lia Lóllis)


Título: Gigante adormecido (Deitado eternamente)

Arte e poesia: Fábio Freitas (Sansão)

Foto: Lia Lóllis

 


ORIGEN DE LA POESÍA

marciano lopes

 
El poeta es un dragón.
Un dragón que destruye las palabras
que se las mastica
tritura
rumia.

Y después
con furor
se las revuelve en un largo beso
de lenguas en fuego.
__________________________
O poema faz parte do livro e cd A Contrapelo, de Marciano Lopes.
Imagem: Mulher e demônio, de William Blake.

terça-feira, 28 de abril de 2009

O Mal de D. Quixote - Romantismo e filosofia da história na obra de Raul Pompéia. São Paulo: Editora da Unesp, 2008.




PREFÁCIO de EDUARDO F. COUTINHO – texto apresentado durante a banca de avaliação da tese:

Movida pelo sucesso de O Ateneu, que teve grande repercussão desde a época de sua publicação, passando a integrar de imediato o cânone da literatura brasileira, a crítica dedicou-se desde então, com afinco e entusiasmo, ao estudo dessa obra, deixando quase ao abandono o restante da produção de Pompéia que, embora não menos valiosa, manteve-se pouco conhecida do público e à margem do interesse de editores. Com a publicação em 10 volumes entre 1981 e 1991 das Obras, de Raul Pompéia, compiladas e organizadas por Afrânio Coutinho, a situação de injustiça que cercava o trabalho do autor começou a ser corrigida, tornando-se o conjunto de sua obra acessível ao público em geral, e passando esta também a despertar o interesse da crítica. O trabalho de Marciano Lopes e Silva constitui neste sentido um marco, uma vez que tem por objetivo estudar a obra de Pompéia, buscando compreendê-la em seu conjunto, e serve-se justamente como corpus de contos, poemas em prosa (em especial as Canções sem metro) e alguns textos teórico-críticos do autor sobre literatura e artes. Partindo de uma ampla pesquisa, a que não falta boa dose de erudição, o autor constrói um diálogo extremamente rico e instigante com esses textos menos explorados de Pompéia, buscando identificar, como ele mesmo afirma, os valores cognitivos e éticos que orientam sua criação artística e lhe conferem organicidade. Além disso, procede a uma leitura da fortuna crítica do autor, questionando alguns de seus postulados básicos, como a classificação de sua obra no Real-Naturalismo ou no Impressionismo, e desenvolve a hipótese, por ele mesmo lançada, de que ela expressa uma visão de mundo romântica.
Do ponto de vista teórico, sente-se a presença de um sólido substrato, composto por figuras como Bakhtin, Benjamin, Bourdieu, Cassirer, Eagleton, Hauser, Löwy, Lukács, Praz, Todorov, Tomachevski, Wilson, etc., sem falar nos filósofos Hegel, Kant e principalmente Schopenhauer, que estão na base de sua argumentação; mas o autor não se prende a nenhum deles especificamente, construindo, ao contrário, uma linha de reflexão própria, que coloca num primeiro plano a obra mesma de Pompéia e a tradição da literatura brasileira. Daí a presença, também tão forte, dos principais críticos e historiadores da literatura brasileira e da fortuna crítica de Raul Pompéia, que é amplamente revisitada. Mas os pontos altos do seu trabalho são os momentos de penetração no texto pompeiano, as exegeses textuais, que são marcadas por arguta sensibilidade e dose inegável de criatividade. Também de grande interesse, e na mesma esteira, são as comparações, aliás bastante adequadas, com os textos de poetas franceses, especialmente Baudelaire, cuja influência sobre Pompéia é apontada por diversos críticos brasileiros e que figura em contraponto com este em toda uma seção do trabalho, em exercício bem à maneira da Literatura Comparada. No que concerne à linguagem, é uma tese muitíssimo bem escrita, num estilo fluido e escorreito, de leitura densa, mas agradável, e que reflete, como não poderia deixar de ser, a maturidade intelectual do autor. Finalmente, a bibliografia é vasta e bem elaborada e as notas corretas e adequadas, geralmente acrescidas da tradução bem feita de textos em francês e espanhol.

Eduardo Coutinho



Resumo: O primeiro objetivo da pesquisa é o de resgatar a obra de Raul Pompéia do esquecimento a que foi condenada pela crítica e pela historiografia brasileiras, posto que a maioria dos estudos sobre ela focaliza O Ateneu, deixando de lado os demais textos. O segundo objetivo é o de fazer este resgate procurando compreendê-la em seu conjunto, ou seja, procurando determinar os valores cognitivos e éticos que orientam a criação artística do autor e que dão organicidade à mesma. Para tanto, tomamos como hipótese a idéia de que ela expressa uma visão de mundo romântica e delimitamos o corpus: seus contos, poemas em prosa – especialmente Canções sem metro – e textos teórico-críticos sobre literatura e arte. Tal escolha não significa que excluímos de nosso estudo O Ateneu e os demais romances, assim como as crônicas, mas sim que lhes demos menor atenção. No capítulo introdutório, realizamos a revisão da recepção crítica da obra de Raul Pompéia e a discussão que fundamenta nossa hipótese. No segundo capítulo, apresentamos um perfil dos seus folhetins e analisamos seus textos de teoria literária, procurando definir a sua postura com respeito à natureza e à função da literatura. Feito isso, passamos à análise dos textos de crítica literária, contos, crônicas e poemas em prosa publicados na seção Pandora da Gazeta de Notícias em 1888 com o objetivo de verificar a coerência entre a sua produção teórica, crítica e literária. No terceiro capítulo, concentramos nossa atenção em Canções sem metro com o objetivo de determinar a filosofia da história existente na obra. Como corpus auxiliar, foram utilizados a primeira e a segunda conferências do professor Cláudio em O Ateneu e a crônica-ensaio “Cavaleiros andantes”. No quarto capítulo, discutimos o tema das “ilusões perdidas” e a idéia de decadência nos contos e poemas em prosa. Para tanto, inicialmente analisamos várias alegorias presentes nos poemas em prosa, as quais são utilizadas, na seqüência, como chaves de leitura dos contos. Tal movimento analítico tem como contraponto os poemas em prosa de Charles Baudelaire, posto que inúmeros críticos apontem a “influência” do poeta francês na obra do brasileiro. No quinto capítulo, analisamos e discutimos os significados da alegoria de “O Mal de D. Quixote” existente no texto homônimo posto ser ela fundamental para a compreensão da obra de Raul Pompéia e servir como chave de leitura para inúmeros contos analisados na seqüência. Baseados na idéia de que o romantismo é uma doença, buscamos mapear as suas diversas manifestações de modo a compreendermos os motivos da variabilidade estilística e ideológica existente na sua obra. Para encerrar, discutimos os valores e os significados do riso e da ironia. Por fim, no sexto e último capítulo, procuramos equacionar todos os resultados obtidos durante o desenvolvimento do trabalho. Para tanto, discutimos a posição e o valor da obra de Raul Pompéia na historiografia literária brasileira tendo em vista principalmente a visão de mundo dominante no seu conjunto.
Marciano Lopes