quarta-feira, 29 de abril de 2009

LIBERDADE E IMAGINAÇÃO NA MPB: da seleção da censura à seleção do mercado - por Marciano Lopes

(...) Existe o prazer especial da decifração, vulgarizado de uma maneira fenomenal entre os charadistas e amigos da espécie, (...) Os mestres do apólogo, os catedráticos do símbolo, com os seus golpes esquerdos de estilo, com as suas soberbas tintas de epigrama dão para nos entreter séculos e séculos de leitura! É um encanto perseguir-lhes (...) a dubiedade esperta, contida nas frases neutras, ao saber ao mesmo tempo de Deus Nosso Senhor e de Satanás. (Raul Pompéia)


Outro dia estava ouvindo Ivan Lins e peguei-me a pensar sobre quanta diferença existe entre a MPB de hoje e a dos anos 60 ao final dos 80. Que diferença principalmente na qualidade das letras! Antes elas eram muito mais bem trabalhadas esteticamente e mais profundas. Não eram poucas as que permaneciam de pé mesmo quando lhes tirávamos a música. E por mais perigosa que seja a seguinte idéia, atrevo-me a afirmar que a repressão ditatorial contribuiu para a criação de letras mais inteligentes. Ia dizendo críticas, mas nisso ia cometendo um grave engano, pois as letras de hoje são muito críticas, sim; mas pouco inteligentes na exploração da palavra, de seu potencial plurissignificativo e subversivo da linguagem e dos valores nela impressos. Para exemplificar, veja-se o rap, o funk e o atual pop-rock. Seja como for, nada mais exemplar do que o rap para demonstrar como atualmente toma-se a palavra no seu uso cotidiano e já gasto, como se ela fosse transparente, como se cada uma delas não tivesse uma diversidade de significados muitas vezes contraditórios e reveladores escondidos por detrás da falsa aparência de univocidade que o uso cotidiano – sem reflexão – cria.
“Abre alas” (1974), “Somos todos iguais nesta noite” (1977), “Bandeira do Divino”, “Cartomante”, “Depois dos temporais” (1983), todas de Ivan Lins e seu grande parceiro Vítor Martins (o responsável pelas letras!), são canções maravilhosas que se mantêm vivas até hoje apesar do sentido político que possuíam. Mesmo passado o momento histórico em que foram criadas, estas composições ainda são significativas para quem não viveu e/ou não sabe daqueles duros dias porque as letras tratam de fatos e coisas cirscuntanciais (datadas historicamente) valendo-se da dubiedade da metáfora e da alegoria. Em “Somos todos iguais nesta noite”, Vítor Martins utiliza a metáfora da “noite”, cuja conotação significa um período de dor, trevas e opressão, e a alegoria do “circo” como análogo ao “espetáculo da vida” – então considerada como um jogo arriscado. Passado o momento histórico em que foi criada, a alegoria do circo, no qual o “chicote dos domadores / e o rufar dos tambores” apontavam para a opressão da ditadura militar, passa a significar a opressão de qualquer outro governo que no lugar da liberdade e do respeito à vida faça a política do pão e do circo, assim como na Roma dos césares, que tem nas ruínas do Coliseu a lembrança alegórica desta barbárie (lembrem do filme “O gladiador”). O mesmo acontece com “Bandeira do Divino”. Passado o momento histórico que levava o ouvinte a interpretar a figura da “bandeira” como significando a “bandeira pátria”, a “luta” contra a ditadura e a “causa” da liberdade, que deveria ser levada de casa em casa juntamente com a mensagem de amor e esperança, permanece o seu significado religioso, a sua dimensão de resgate e recriação da cultura popular das folias de reis.
Sem dúvida, o mestre no uso da metáfora e da alegoria era o Chico. São tantos os exemplos: “Roda-Viva”, “Construção, “Cálice”, “Rosa-dos-ventos”, “Bye bye Brasil”, “Vai passar”... Até quando não usava a metáfora, o símbolo e a alegoria, sabia explorar com maestria o duplo sentido possível de um discurso conforme o contexto em que é produzido, como é o caso de músicas como “Apesar de você”, em que o responsável pela dor (o “você” da canção) pode ser entendido como o ser amado que nos oprime, mas que, na época, também era compreendido por muitos como o presidente Emílio Garrastazu Médice. Em “Vai passar”, assim como na antológica “Rancho da goiabada” de Aldir Blanc (grande parceiro e letrista de João Bosco, assim como Vítor Martins foi de Ivan Lins), os mascarados que desfilam pela avenida no carnaval representam os pobres, sonhadores e desvalidos deste Brasil surreal. Em “Construção”, cada palavra proparoxítona que termina os versos é mais um tijolo a contribuir para o embotamento do operário que não consegue se “construir”, ou seja, se politizar (assim como o “Operário em construção” de Vinícius de Moraes). “Roda-Viva” permanece atualíssima como alegoria da máquina devoradora do show business. “Bye bye Brasil” (música-tema do filme homônimo dirigido por Cacá Diegues) ainda é uma alegoria atual da modernidade selvagem que avança pelo interior do Brasil que não chegou ao século XX. Felizmente, entre elas, “Cálice” já não permanece atual, na medida em que tudo (?!) pode ser dito sem que se desliguem os microfones do estádio, do rádio ou da TV... Mas quando tudo pode ser dito desde que encontre seu nicho no mercado, como fica o valor da liberdade de expressão, o valor da palavra medida e pesada, da palavra que poderia levar o destinatário a pensar, a perder a ingenuidade frente a linguagem e tornar-se realmente um ser crítico, capaz de desenvolver um raciocínio abstrato e encarar de frente a complexidade da vida? Ao que parece, tal palavra não tem lugar no mercado, pois não vende, não serve ao entretenimento e à diversão... E quando tal palavra encontra seu espaço, parece misturar-se indistintamente à geléia geral. Há, claro, os independentes, mas o acesso a sua produção já requer um bom nível de cultura e informação assim como um esforço de pesquisa consideráveis... Daí, pergunto: que liberdade é essa que nos emburrece e nos anestesia? Não estou defendendo a idéia de que a censura é boa, mas, cá entre nós, nem toda liberdade é propícia à arte, nem toda liberdade rima com felicidade...
marciano lopes

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