terça-feira, 23 de julho de 2013

Memória: abertura do II CONALI, em outubro de 2008.

Da esquerda para a direita:
Edson Romualdo, Ismara Tasso, Mário Luiz Neves de Azevedo, Aécio Flávio de Carvalho,
eu e Mirian Hisae Yeagashi Zappone.

terça-feira, 9 de abril de 2013

A POÉTICA DO SOLARIUM, DE RODRIGO GARCIA LOPES

Referência:  Rodrigo Garcia Lopes. Solarium, São Paulo: Iluminuras, 1994.

 
Solarium, primeiro livro individual de Rodrigo García Lopes, reúne o fruto de mais de dez anos de caminhada poética, o que explica a variedade de influências e identidades literárias muitas vezes contraditórias – entre as quais se encontram poetas ingleses e americanos, incluindo a geração beatnik e autores mais contemporâneos, como Sylvia Plath (de quem é tradutor); os poetas fundadores da modernidade, tais como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud (de quem também é tradutor); o concretismo brasileiro e a poesia oriental, representada principalmente pela poética do haicai. E na alquimia resultante de todas estas leituras, duas grandes vertentes temáticas se sobressaem em seu livro de estréia: por um lado, uma poesia que tematiza o caos da modernidade, trazendo à tona os conflitos e a barbárie do mundo urbano, massificado pela tecnologia e pelo mercado; por outro, uma poesia que recusa a massificação e o narcisismo comuns ao homem moderno, buscando na filosofia do zen-budismo o caminho reto para a iluminação e a ascese. Nas próprias palavras de Rodrigo Garcia Lopes (1996, p. 139-140), é possível afirmarmos que a tensão dominante em sua poética resulta, em parte, do “diálogo entre o impulso apolínio à forma-objeto de Mallarmé e o impulso dionisíaco à imagem-música de Rimbaud”, nos quais se encontram dois dos principais procedimentos (não antagônicos, em sua opinião) da poética contemporânea.
   

Dioramas e Polaróides


Nas duas primeiras partes de Solarium – intituladas “Dioramas” e “Polaróides” – predomina uma poesia sintética e racionalmente elaborada que busca uma linguagem poética autônoma, pois regida por uma sintaxe própria que valoriza principalmente o espaço em branco da página – conforme a lição pioneira que Mallarmé nos deu com seu poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard.
 
Em vários poemas, como Phanums, Outro outono, Zen Breakfast Club, Morning Glory e Tempestade invisível, encontramos a eleição de uma sintaxe espacial resultante de diferentes direções, sentidos e configurações da composição tipográfica no branco da página; e associado a esse primeiro passo rumo à desintegração do verso e da sintaxe linear através de uma “subdivisão prismática das idéias”, também encontramos o recurso da desintegração e do recorte das palavras, que e. e. cummings utilizava de maneira a ampliar-lhes o potencial significativo – conforme se vê no poema Não minto.
 
O predomínio da visualidade que estamos apontando na utilização de diversos recursos gráficos e espaciais em substituição à linearidade discursiva também nos remete ao concretismo, presença marcante nestas duas primeiras partes que compõem Solarium e que encontra uma bela realização artística no poema snow here. Nele, as letras da palavra neve (snows) são dispostas na página de maneira a representar visualmente o movimento de queda dos flocos de neve. À medida que se aproximam do solo/pé da página, os flocos maiores, que são as palavras, vão se desintegrando e assumindo novas formas-flocos que geram novas palavras e significados, pois as letras, soltas no branco da página, dançam um balé, ora se separando, ora se juntando, de modo a produzir novas e conflitantes palavras e significações. Paradoxalmente, a neve (snows) que cai agora (now), cai aqui e em algum/nenhum lugar (nowhere). 
   
Seguindo a trilha que privilegia a significação através da imagem em detrimento da lógica linear, também é recorrente na poesia de Rodrigo G. Lopes o recurso ao ideograma. Um bom exemplo é o poema peônias negras, formado por sete haicais que, seguindo a  tradição oriental, desenvolvem seus temas a partir de imagens da natureza. Imagens que, nesse caso, constituem metáforas da transitoriedade da vida e das coisas:
 
peônias negras
serenas
quase secas
 
(...)
 
o inverno
furta a flor
a cor da fruta
 
(...)
 
a tarde passa
arrasta e deixa
um rastro prata.
                 (peônias negras)
 
É importante ressaltar que a importância dada à imagem e à utilização dos recursos espaciais e gráficos não ocorre em detrimento da sonoridade, pois a preocupação com a melopéia encontra-se presente em todo o livro. Dois exemplos são os poemas Cet obscur objet du désir e Montanhas:
 

no café del prado

em barcelona
um bando de pombas
rebolam pelas ramblas
                (Cet obscur objet du désir)
 

não são nuvens

mas tão brancas
 
solitárias
(mas são tantas)
                  (Montanhas)
 
Ainda considerando a melopéia, são dignos de nota o leminskiano tudo tem sentido, onde o poeta joga com os diferentes sentidos da palavra “sentido”; e os poemas você me toca e somos, nos quais reencontramos o tema da ausência do Eu e a conseqüente solidão que permanece existindo, mesmo quando estamos lado a lado com alguém que desejamos ou no meio da multidão, conforme se vê no poema você me toca. Nele, parodiando Baudelaire, o poeta deseja uma passante que se perde na multidão, inacessível ao seu desejo. A diferença com o poema de Baudelaire fica por conta da mudança de tom. No poema dele, esse é marcado pelo tormento resultante da efemeridade das relações e pela insatisfação do desejo; no poema de Rodrigo, é marcado pela aceitação da efemeridade e do caos da vida moderna que, ao invés de atormentar o flaneur/vouyer, docemente o entretém nas horas vagas. O desejo que antes expressava a angústia da solidão e do vazio em meio ao caos e à multidão do mundo moderno torna-se um sentimento tão passageiro e supérfluo quanto a sedutora passante:
 
você me toca
 
você me toca
como quem troca
de roupa
 
você me provoca
e troça
dessa minha doce
distração
 
pra que tanta pressa
você
mulher na multidão?
           
 
Solarium
Na terceira parte, intitulada “Solarium”, a busca de uma nova linguagem se faz principalmente através da vertente dionisíaca. Diversamente do que vimos nas duas primeiras partes, o autor deixa de privilegiar o planejamento racional e objetivo, que caracteriza o concretismo e a poesia de Mallarmé, em favor dos impulsos e divagações, nem sempre conscientes, que caracterizam uma dicção muito próxima daquela que marcou a poesia de Rimbaud e da geração beatnik. Nela, predominam longos poemas de versos livres, em que o texto, aparentemente linear, se desenrola de modo fragmentário como em um fluxo de consciência, sem que haja um único fio condutor do discurso e, portanto, sem maior coesão e coerência.
 
A menção ao uso de drogas, como acontece no poema Phanopium, cujo título pode ser interpretado como a aglutinação de phanus e/ou phanopéia mais opium = ópio, constitui um outro índice de afinidade com a poesia de Rimbaud e dos Beatniks. Na busca de uma nova linguagem, Rodrigo Garcia Lopes procura despersonalizar a linguagem através da negação de qualquer centro discursivo, de modo que a representação ocorra através de uma sintaxe descontínua e fragmentada – o que resulta em um processo esquizofrênico de captação alegórica, sinestésica e ideogrâmica do que costumeiramente chamamos de mundo real (o que é claramente tematizado no metapoema Processo). Com tais procedimentos, perde-se a noção de tempo e espaço, os sentidos se misturam e se espera que a personalidade desapareça.
 
Em vários poemas desta parte do livro, também encontramos a tematização da cidade como caos e a negação do consumismo, da mecanização, da violência e da exploração presentes na sociedade burguesa. A América urbana e tecnológica, massificada e violenta, é comparada à cidade de “Roma em chamas” (América # 2). Nas megalópolis – representadas no poema New York – não há mais espaço para a reflexão, o sentimento e a utopia. Nelas, “a serpente das ruas arrasta seus ruídos, raps & neons / devora um real que acumula seus pós / sobre nós, camadas / de civilização sem fim e sem saída”.
Caos urbano digno do cenário de filmes como Blade Runner, a cidade de New York representa a demência e a desumanização de uma sociedade regida pela racionalidade pragmática, pela idéia do progresso material e técnico que leva o homem à escravidão dos relógios. Nesse mundo fragmentado e sem sentido, que também encontramos no poema “M”, os seres humanos são reduzidos ao estado de mercadoria, cujas relações são medidas pelo moderno desing do corpo e pela produtividade do prazer tecnológico.
 
Em busca de phanus
 
 A constância dos temas da dissolução da realidade e do Eu não deve ser vista apenas como uma crítica ao padrão de vida moderno que, regido pela incessante produção de novas mercadorias e valores, dissolve e pluraliza as identidades em um caleidoscópio de máscaras. Outro importante aspecto que envolve o motivo da despersonalização  também se encontra na afirmação da primeira das quatro grandes verdades da mundividência budista, que perpassa todo o conjunto da obra.
 
Segundo a filosofia do budismo tudo é sofrimento, pois “não há coisa alguma que não esteja submetida a incessantes mudanças. E quanto mais o homem se esfalfa, procurando alguma coisa permanente a qual se possa apegar neste mundo efêmero, tanto mais sofre” (Gira, 1992:53). A verdade está no karma, que leva o homem ao infinito ciclo de renascimentos e mortes neste plano cósmico marcado pela imperfeição e pelo sofrimento. E outra não parece ser a lição que encontramos em tantos poemas de Rodrigo Garcia Lopes. A transitoriedade que marca a existência dos seres também se estende ao Eu do indivíduo, pois para o budismo esse não possui unidade e permanência, o que nega a idéia de uma essência humana. Para Buda, a busca de um Eu permanente, ou seja, da realidade interior e do Absoluto, “não era diferente da procura da Fonte da Eterna Juventude. (...) E na mesma proporção em que um homem gasta suas energias em uma busca dessa espécie, se afasta da possibilidade real que teria de se libertar do samsãra” (Gira, 1994:55). Daí resulta a constância dos temas da busca infrutífera do Eu e da sua ausência, assim como da solidão e da estranheza entre os seres, mesmo quando eles estão lado a lado, numa cama ou na multidão.
 
(...) O que
carregamos são espelhos que refletem sempre
o diferente, enquanto nós, eu e você
mudamos juntos. Nuvens
                                               (Outras praias).
 
Na caminhada em busca da libertação, de acordo com as outras três nobres verdades, deve o homem abrir mão dos seus desejos e ouvir o que o “(...) outono / tem pra nos dizer: / tempo de se desfolhar / – cores, peles, percepções”, conforme lemos em Um poema para o deserto.
 
Na busca da iluminação, deve-se renunciar ao desejo de possuir um Eu permanente através de um comportamento reto, de uma disciplina mental em que a concentração constitui o caminho para a “eliminação de tudo aquilo que alimenta a ignorância do homem” (Gira, 1994:91). Daí a necessidade de se eliminar os “cinco agregados” que constituem aquilo que percebemos como um indivíduo: a matéria, as sensações, as percepções, os desejos e a consciência, em suma, todos os vínculos que ligam o homem ao mundo material. Somente assim, por esse processo de ascese e meditação, em que “(...) é preferível / eliminar este pensamento e deixá-lo livre” (Improvisos), é possível o encontro com a sabedoria, com a iluminação que caracteriza o nirvãna.
 
É devido ao diálogo com a filosofia do zen-budismo que encontramos constantemente, nas três partes da obra, a presença das imagens do outono e das folhas secas que o vento leva e que sempre se renovam, revelando em sua alegoria o eterno movimento cíclico da vida – conforme vemos em O eterno renovo do mesmo (poema concreto e metalingüístico pertencente a Dioramas). Desta forma também se explica a obsessão pelo deserto “com seus rios secos desde o começo / com sua sede sonora / com o sal que não pergunta / do sentido / deste paraíso perfeito” (Um poema para o deserto) em que não há “nenhum milagre a não ser / as coisas como são” (Sedona), onde “tudo é phanus” (O fotógrafo), ou seja: templo, iluminação – conforme o significado grego.
 
 Como vemos, o orientalismo e especialmente o zen-budismo atravessam o livro inteiro, convivendo com a racionalidade ocidental – tão bem representada por Mallarmé e pelo concretismo –, com a contracultura do movimento beatnik, e com a fragmentação alegórica de um mundo moderno (ou pós-moderno?) em ruínas. Em meio a este caos e à esquizofrenia geral, fica, no fim, a sensação de que o poeta luta entre ser um zen-fotógrafo – procurando congelar em suas iluminuras o tempo eternamente cíclico da existência – ou então ser um câmera-zen, almejando registrar o fluxo ininterrupto e fragmentário da existência.
 
 
Marciano Lopes 
 
_________________________
Referências Bibliográficas
GIRA, Dennis. Budismo: história e doutrina. São Paulo: Vozes, 1992.
LOPES, Rodrigo Garcia; MENDONÇA, Maurício Arruda. Iluminuras: poesia em transe. In: Rimbaud, Arthur.  Iluminuras: Gravuras Coloridas (Tradução de Rodrigo Garcia Lopes & Maurício Arruda Mendonça). São Paulo: Iluminuras, 1996.
 
______
 Nota:   
 
Texto escrito originalmente para a saudosa revista eletrônica No Meio do Caminho, em Maio/2004.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Tradução e crítica: a natureza na poesia de Eugène Guillevic


EUGÈNE GUILLEVIC: UM POETA DA HUMILDADE
Marciano Lopes

para Maria Lídia L. Maretti
e Mayara Donadon, que colaborou na análise

Houve tempo em que os brasileiros bem-educados queriam ser franceses. Muito se fez de bom e ruim para se alcançar tal semelhança. Hoje os tempos são outros e a França esquecida (salvo quando se trata de Copa do Mundo de Futebol...) perdeu seu trono para a cultura inglesa e, especialmente, a norte-americana – o que torna difícil o acesso, nos dias atuais, à sua produção cultural, seja ela nas artes plásticas, na música ou na poesia. Por tal motivo, são merecedoras de aplauso e divulgação a Antologia da poesia francesa (do século IX ao século XX) organizada por Cláudio Veiga, que também realizou o árduo (mas delicioso) ofício de traduzir os poemas selecionados. [i] Ao lê-la, há alguns anos atrás, tive o prazer de ser apresentado à poesia de Eugène Guillevic (1907-1997), que é representada na obra por quatro textos sobre os quais vou discorrer com o intuito de compartilhar a descoberta com você, caro leitor.[ii] Para começar, vejamos o significativo meta-poema J’ai vu le manuisier (“Tenho visto o marceneiro”): [iii]

J’AI VU LE MANUISIER

J’ai vu le manuisier
Tirer parti du bois.

J’ai vu le manuisier
Comparer plusieurs planches.

J’ai vu le manuisier
Caresser la plus belle.

J’ai vu le manuisier
Approcher le rabot.

J’ai vu le manuisier
Donner la juste forme.

Tu chantais, le manuisier,
En assemblant l’armoire.

Je garde ton image
Avec l’odeur du bois.

Moi j’assemble des mots
Et c’est un peu pareil.

TENHO VISTO O MARCENEIRO

Tenho visto o marceneiro
Da madeira aproveitar-se.

Tenho visto o marceneiro
Comparar diversas pranchas.

Tenho visto o marceneiro
A mais bela acarinhar.

Tenho visto o marceneiro
Avançar a sua plaina.

Tenho visto o marceneiro
Conseguir a forma justa.

Tu cantavas, marceneiro,
Os armários encaixando.

Eu guardo com tua imagem
O perfume da madeira.

Eu, que as palavras combino,
Faço um pouco a mesma coisa.

(Tradução: Cláudio Veiga.)



         O poema acima é muito significativo, pois nos fala de aspectos marcantes da poética do seu autor. Nele, o eu-lírico, ao observar o trabalho do marceneiro, discorre, por comparação, sobre o seu trabalho de poeta. Ao fazê-lo, aponta para os valores da simplicidade, da humildade e do trabalho como aspectos positivos e orientadores do seu labor artístico.
A simplicidade apontada encontra-se, à primeira vista, na própria forma do poema. Este é composto de oito dísticos, ou seja, de oito estrofes de dois versos, sendo os mesmos invariavelmente hexassílabos (heptassílabos na tradução em português) – metro preferido do autor, conforme observa Catherine Réault-Crosnier.[iv] Não há rimas externas, mas apenas a repetição da palavra “marceneiro” devido ao paralelismo entre todas as estrofes – importante característica da lírica em geral e, mais atualmente, da poesia popular. O paralelismo ocorre porque o primeiro verso de cada dístico sempre é composto pela oração que dá título ao poema e o segundo por outra oração que apresenta alguma atividade executada pelo marceneiro. O léxico é simples, pois as palavras são comuns e de fácil entendimento; clareza que também é conferida pela sintaxe, bastante direta, sem inversões que dificultem a compreensão.
A simplicidade da forma faz eco à simplicidade do ofício, que é, geralmente, considerado humilde. Lembremos que, segundo o dicionário, a humildade é uma virtude que nos dá o sentimento da fraqueza, podendo estar associada à modéstia, à submissão e à pobreza. Lembremos também que, na nossa cultura ocidental e cristã, a marcenaria era o ofício de José, “pai” de Jesus. Sobre a religiosidade cristã de Guillevic, é significativo que o mesmo foi católico praticante até por volta dos trinta anos, quando teve sua crença abalada pelo desastre da revolução franquista, na Espanha – fato que muito provavelmente foi importante para a sua decisão de aderir ao Partido Comunista Francês em 1942, conforme informa Mario Laranjeira.[v]
A simplicidade, a humildade e o amor à natureza – afinal, a matéria-prima do marceneiro é a madeira, cujo perfume o poeta guarda na memória – também estão presentes em muitos outros poemas do autor, conforme pude perceber através da leitura do artigo de Catherine Réault-Crosnier (ver poemas selecionados ao fim deste texto). Na antologia organizada por Cláudio Veiga, os poemas Oui l’eau coule... (“Sim, a água corre”) e Non, tout le monde (“Não, nem todo mundo”) também apresentam estes motivos tanto na forma quanto na temática. Com relação ao primeiro aspecto, observe-se que eles são extremamente sintéticos, de vocabulário e sintaxe muito coloquiais. Quanto ao tema, novamente temos a presença da natureza nas suas formas mais simples e humildes: a água que corre, a rosa, a árvore que cresce... 

OUI, L’EAU COULE...

Oui, l’eau coule et l’arbre attend.

Elle coule au creux de la terre,
Elle coule dans la chair de l’arbre.

Et l’arbre attend.

SIM, A ÁGUA CORRE...

Sim, a água corre e a planta [espera.

Ela corre no côncavo da terra,
Corre no cerne da planta.

E a planta espera.

(Tradução de Cláudio Veiga.)
  
NON, TOUT LE MOND

Non, tout le monde
N’aime pas la rose.

Il y en a qui préfèrent
De bien autres choses,

Il y en a qui préfèrent
Ne pas aimer la rose.


NÃO, NEM TODO MUNDO

Não, nem todo mundo
Gosta da rosa.

Há alguns que preferem
Gostar de outra coisa,

Há alguns que preferem
Não gostar da rosa.

(Tradução: Cláudio Veiga.)

Ainda é muito importante – e talvez seja mesmo conclusivo – considerarmos a postura do eu-lírico em todos os três poemas. Neles, sua atitude é a de quem contempla, com a paciência da planta que espera, a natureza e medita sobre ela, buscando encontrar as verdades mais profundas nas coisas mais simples e puras. Atitude que expressa uma postura cristã, naquilo que o cristianismo tem de mais puro e original, mas que também pode se encontrar em outras religiões ou filosofias, como é o caso do zen-budismo. E se fizermos uma leitura alegórica dos poemas “Sim, a água corre” e “Não, nem todo mundo”, também é possível considerá-los como metapoéticos. Neste caso, podemos interpretar a figura da rosa como símbolo da poesia e a imagem da água a correr como simbolizando o fluxo da vida e dos pensamentos do poeta. Sob este ponto de vista, em que o eu-lírico se identifica com a árvore (l’arbre, traduzido por “planta”) que espera, temos a afirmação de uma poética cujo princípio criativo encontra-se inicialmente na inspiração, somente depois ocorrendo o trabalho de arte com o texto.
Por tais razões, a poética de Eugène Guillévic parece-me um pouco romântica – aspecto em que divirjo parcialmente de Catherine Réault-Crosnier – pois, embora desprovida de sentimentalismo, constitui a expressão de um espírito guiado pela humildade, que busca a paz e a sabedoria tanto nas humildes formas da natureza como no trabalho artesanal. E esta valorização do trabalho não alienado pela técnica e pela produção em série exigidas pela economia capitalista é, sem dúvida, um importante traço da visão de mundo romântica segundo o ponto de vista de Michel Löwy e Robert Sayre. Em suma, viva a poesia de Eugène Guillevic por ser profundamente natural e simples.
Para encerrar, seguem alguns outros poemas que também apresentam as mesmas características observadas acompanhados de traduções de meu punho. Retirei-os do já citado artigo de Catherine – a quem muito agradeço o contato crítico que me possibilitou com tão bela poesia.

LES TEMPS

Le temps qui peut changer
Le nuage en nuage
Et le roc en rocaille,

Qui fait aussi languir
Un oiseau dans les sables

Et réduit au silence
De l’eau pure tombée
Dans l’oubli des cravasses,

Le temps existe,
À mi-chemin.

O TEMPO

O tempo que cambia
A nuvem noutra nuvem
E o rochedo em cascalho,

Que faz também adormecer
Um pássaro nas duras pedras

E reduz ao silêncio
D’água pura caída
Em olvidadas fendas,

O tempo existe,
A meio-caminho.

(Tradução: Marciano Lopes)

 CARNAC*
(Excerto)

Mer au bord du néan,
Qui se mêle au néant,

Pour mieux savoir le ciel,
Les plages, les rocheurs,

Pour mieux les recevoir.

 CARNAC*
(Excerto)

Mar à beira do nada,
Que se mistura ao nada,

Pra mais saber o céu,
As praias, os rochedos,

Pra melhor recebê-los.

(Tradução: Marciano Lopes)


* Região em que nasceu Eugène Guillevic.



ROND

Qu’est-ce qu’il y a donc
De plus rond que la pomme ?

Si lorsque tu dis : ronde,
Vraiment c’est rond que tu veux dire,
Mais la boule à jouer
Et plus ronde que la pomme ;

Mais si, quand tu dis : rond,
C’est plein que tu veux dire,
Plein de rondeur
Et rond de plénitude,

Alors il n’y a rien
De plus rond que la pomme.

REDONDO

O que é que existe, portanto,
De mais redondo do que um pomo?

Se então, tu dizes: redondo,
Certamente é redondo o que tu                                        [dizes,
Mas a bola para jogar
É mais redonda do que o pomo;

E se dizes, então: redondo
É pleno o que queres dizer,
Pleno de redondeza
E redondo de plenitude,

No entanto, não existe nada
De mais redondo do que o pomo.

(Tradução: Marciano Lopes.)


NOTAS:
[i] VEIGA, Cláudio (organizador e tradutor). Antologia da poesia francesa (do século IX ao século XX). 2 ed. ampliada. Rio de Janeiro: Record; Salvador, BA: Secretaria da Cultura e do Turismo, 1999.
[ii] VEIGA, Cláudio. Opus cit, p. 400-407.
[iii] Há ainda outros poemas traduzidos de Eugène Guillevic na antologia bilíngüePoetas de França hoje, com seleção de textos, tradução e introdução feitas por Mário Laranjeira (Edusp/Fapesp, 1996).
[iv] Artigo intitulado “Eugène Guillevic (1907-1997), poète français contemporain” – acessado em 07/08/2006:  http://membres.lycos.fr/crcrosnier/articles/guillevic-poete.htm
[v] Apresentação de Eugène Guillevic, em Poetas de França hoje, pág. 111.

Observação: Texto publicado originalmente em 3 de setembro de 2006 na minha seção Balaio de Letras da saudosa Revista No Meio do Caminho, editada por Caetano Medeiro, Sansão e eu.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Babel Poética n. 5: o índio e sua cultura




Esta quinta edição de Babel Poética, organizada e editada pelo poeta e crítico Ademir Demarchi (que editou por décadas a Revista Babel), "faz parte de uma série de 6 planejadas, tem como tema o índio e sua cultura. Isso está expresso (...), na primeira parte da edição, através de poemas e textos de índios mesmo e, em contraste, na segunda parte, composta com textos de não-índios que têm se interessado pela questão." (Editorial)



Nesta edição que tive a honra de participar: Ademir Assunção, Adriandos Delima, Angela Mendes Ferreira, Armando Morubo, Carlos Tiago, Daniel Munduruku, Douglas Diegues, Eliane Potiguara, Enzo Potel, Graça Graúna, Guillermo Sequera, Jairo Pereira, Joca Reiners Terron, José Leite Netto, José Otávio Carlomagno, Josely Vianna Batista, Juayran, Laisa Kaingang, Luiz Ruffato, Marciano Lopes, Márcio Rufino,Marco Cremasco, Maria Aparecida Nunes Barbosa, Mary Pitaguary, Poeta de Meia-Tigela, Ricardo Corona, Rogério Skylab, Rudinei Borges, Sandra Santos, Sérgio Buarque de Hollanda, Tadeu de Moraes Delgado, Vinicius Lima, Waldo Motta, Zé Fragoso.


http://issuu.com/babelpoetica/docs/babel_poetica5/1

Abaixo, a capa da Babel Poética 2 - Lugares onde se passa a vida.



terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Haikais da hora: Ciclo


Ciclo

 

Nas noites de chuva

o verde novo  enrijece.

Sonha lua nova.

 

Brotinhos.

Por entre folhas verdes

brotam caracóis.

 

Frutos podres.

Passarinhos avoam.

Botões em flor.
 
 
            

      Poema de Marciano Lopes

 Fonte da imagem: clique aqui
 

 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Haikai da hora: Sonho feminista


Sonho feminista:

ser a única amazona

do seu cavalo-marinho.


Poema de Marciano Lopes                                              
 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Tardes brejeiras


O sapo

                  coaxa

a lesma

                  se arrasta

a lagartixa

(que preguiça!)

                  o rabo espicha.

 

Na cama

minha gata

(que graça!)

                   se espreguiça...

 

Ah! Essas tardes brejeiras

de subúrbios do interior...
 

Poema de Marciano Lopes
 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Ecopoesia: "Meu jardim", de Priscila Antonio

Dias 1 a 3 de agosto participei do I Congresso Internacional de Literatura e Ecocrítica realizado na UFPB, em João Pessoa, Paraíba. Uma das atividades de sua programação foi a realização de um sarau ecológico, pois previa, após a leitura de poemas com temática ecológica (ecopoemas) de participantes do evento, o plantio de mudas de árvores no pátio do Instituto de Educação Doce Mãe de Deus, também destinado a acomodar pacientes de outras cidades em espera de cirurgia. Entre os poemas lidos, está "Meu jardim", de Priscila Antonio da Silva. Na foto acima, ela se encontra a minha frente, atrás da muda plantada. Ao seu lado direito (de verde e vermelho), está Zélia Bora, presidente e organizadora do congresso. A minha direita, atrás, vê-se Scott Slovic, primeiro presidente da ASLE (Association for the Study of Literature and Environment).
















Meu jardim
Priscila Antonio


A sutileza das folhas saltitando pela rua,
os pássaros que se escutam de longe
mas que mesmo sem serem vistos
divulgam seu cantar;
as flores coloridas, distribuídas
em jornal, em campesais
buscam se não a beleza
a felicidade dos meus ancestrais.

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Abaixo, outras fotos do evento ecológico, gentilmente cedidas por Priscila Antonio.




Acima, o poeta peruano









domingo, 23 de setembro de 2012

Um poema em cada árvore

 
21 de setembro, vésperas de primavera, Dia da árvore, dia de "Um poema em cada árvore", movimento pela natureza e pela poesia. Pela leitura das palavras e do mundo. Um prazer ter participado da ação, que ocorreu em 83 cidades do país, incluindo Maringá, onde o amigo e escritor Marco Hruschka foi o articulador. Abaixo, meu poema selecionado - O amor à sombra das sibipirunas - e outro feito no dia, no frescor da tarde pós-chuva.
 
                                         
 
    Foto: Angela Ramalho                                            Foto: Angela Ramalho

 
 
Foto: Marco Hruschka

 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Revista Coyote completa 10 anos!

 
Revista literária comemora 10 anos com inéditos em livro de João Antônio, poemas traduzidos de Alejandro Jodorowsky e ficção de Amilcar Bettega.
 
Uma década uivando contra o conformismo – este é o espírito da revista Coyote, que comemora 10 anos de existência independente com a nova edição de número 24. Para brindar os leitores, as páginas da revista trazem fragmentos inéditos em livro de João Antônio (1937-1996), com saborosas i
mpressões sobre sua curta passagem por Londrina em 1975, quando morou na cidade, e uniu-se a um time de feras da imprensa nacional para fazer o jornal Panorama. Com fotos de Elvira Alegre, o escritor e historiador Tony Hara destaca em seu ensaio introdutório sobre o autor de Malagueta, Perus e Bacanaço e Ô Copacabana!: “Muito se fala sobre o sumiço de João Antônio da atual cena literária. Apesar de participar ativamente da grande imprensa e da imprensa nanica, de mais de 10 livros publicados e de três Jabutis nas costas, João Antônio ainda é, como dizia Jaguar, o mais conhecido entre os escritores desconhecidos”.


 


O número apresenta também um conjunto de poemas do chileno Alejandro Jodorowsky (traduzidos por Vinícius Lima), autor de dezenas de livros, diretor de vários filmes e parceiro de Moebius em clássicos dos quadrinhos como a série Incal.
 

A tradutora Viviane de Santana Paulo apresenta em primeira mão os pungentes poemas do alemão Jan Wagner (1971). Guilherme Gontijo Flores e Mario Domingues traduzem do latim a poesia elegíaca do romano Propércio (50-45 AC - 15 DC), pouco conhecida no Brasil. O número traz como editorial o poema “Ao Coiote”, de Jorge Luis Borges, traduzido do espanhol pela poeta e tradutora Josely Vianna Baptista.

Há ainda contos inéditos de Amilcar Bettega, Paulino Júnior e Alberto Lins Caldas e poemas de Andréia Carvalho, Ikaro Maxx, Artur Gomes e Adriana Versiani dos Anjos. O fotógrafo Orlando Azevedo assina a capa e o ensaio fotográfico do número. Na contracapa, Beto assina o cartum bem-humorado de aniversário da revista.

Em seus dez anos de existência a Coyote publicou mais de 340 autores: de poetas a fotógrafos, de ficcionistas a tradutores, de ensaístas a desenhistas brasileiros e internacionais. Sempre com uma linguagem gráfica ousada e material inédito, patrocinada pelo PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) de Londrina, Coyote firmou-se como "uma das mais importantes revistas literárias do país" (Folha de S. Paulo).
 

Editada pelos poetas e jornalistas Rodrigo Garcia Lopes, Marcos Losnak e Ademir Assunção, a revista Coyote vem revelando novos autores do Paraná, do país e do exterior, reapresentando aos leitores nomes importantes, mas muitas vezes pouco conhecidos ou esquecidos das letras e das artes, de épocas e lugares diferentes, instigando a leitura, a reflexão e a criação literária, sempre farejando a fatia mais radical da literatura brasileira e internacional – radical na linguagem e nas abordagens.
 
“Não estamos preocupados com o que está em alta no mercado. Nosso interesse é nas obras que estiveram, estão e estarão em alta no quesito criatividade, arte da linguagem, densidade e provocação” – dizem os editores.


COYOTE 24 // 52 páginas // R$ 10,00. Uma publicação da Kan Editora. Vendas em livrarias de todo o país, com distribuição pela Editora Iluminuras – fone (11) 3031-6161.
 
**EM CURITIBA: LIVRARIA DO SESC PAÇO DA LIBERDADE E LIVRARIA DO CHAIM.

**EM LONDRINA: BANCA RODEIO E LIVRARIA DA SILVIA

Pode também ser adquirida pela internet através do site: www.iluminuras.com.br


Contatos: marcoslosnak@gmail.com / zonabranca@uol.com.br / rgarcialopes@gmail.com


PATROCÍNIO: PROMIC - PROGRAMA MUNICIPAL DE INCENTIVO A CULTURA – PREFEITURA MUNICIPAL DE LONDRINA - SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DE LONDRINA