terça-feira, 9 de abril de 2013

A POÉTICA DO SOLARIUM, DE RODRIGO GARCIA LOPES

Referência:  Rodrigo Garcia Lopes. Solarium, São Paulo: Iluminuras, 1994.

 
Solarium, primeiro livro individual de Rodrigo García Lopes, reúne o fruto de mais de dez anos de caminhada poética, o que explica a variedade de influências e identidades literárias muitas vezes contraditórias – entre as quais se encontram poetas ingleses e americanos, incluindo a geração beatnik e autores mais contemporâneos, como Sylvia Plath (de quem é tradutor); os poetas fundadores da modernidade, tais como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud (de quem também é tradutor); o concretismo brasileiro e a poesia oriental, representada principalmente pela poética do haicai. E na alquimia resultante de todas estas leituras, duas grandes vertentes temáticas se sobressaem em seu livro de estréia: por um lado, uma poesia que tematiza o caos da modernidade, trazendo à tona os conflitos e a barbárie do mundo urbano, massificado pela tecnologia e pelo mercado; por outro, uma poesia que recusa a massificação e o narcisismo comuns ao homem moderno, buscando na filosofia do zen-budismo o caminho reto para a iluminação e a ascese. Nas próprias palavras de Rodrigo Garcia Lopes (1996, p. 139-140), é possível afirmarmos que a tensão dominante em sua poética resulta, em parte, do “diálogo entre o impulso apolínio à forma-objeto de Mallarmé e o impulso dionisíaco à imagem-música de Rimbaud”, nos quais se encontram dois dos principais procedimentos (não antagônicos, em sua opinião) da poética contemporânea.
   

Dioramas e Polaróides


Nas duas primeiras partes de Solarium – intituladas “Dioramas” e “Polaróides” – predomina uma poesia sintética e racionalmente elaborada que busca uma linguagem poética autônoma, pois regida por uma sintaxe própria que valoriza principalmente o espaço em branco da página – conforme a lição pioneira que Mallarmé nos deu com seu poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard.
 
Em vários poemas, como Phanums, Outro outono, Zen Breakfast Club, Morning Glory e Tempestade invisível, encontramos a eleição de uma sintaxe espacial resultante de diferentes direções, sentidos e configurações da composição tipográfica no branco da página; e associado a esse primeiro passo rumo à desintegração do verso e da sintaxe linear através de uma “subdivisão prismática das idéias”, também encontramos o recurso da desintegração e do recorte das palavras, que e. e. cummings utilizava de maneira a ampliar-lhes o potencial significativo – conforme se vê no poema Não minto.
 
O predomínio da visualidade que estamos apontando na utilização de diversos recursos gráficos e espaciais em substituição à linearidade discursiva também nos remete ao concretismo, presença marcante nestas duas primeiras partes que compõem Solarium e que encontra uma bela realização artística no poema snow here. Nele, as letras da palavra neve (snows) são dispostas na página de maneira a representar visualmente o movimento de queda dos flocos de neve. À medida que se aproximam do solo/pé da página, os flocos maiores, que são as palavras, vão se desintegrando e assumindo novas formas-flocos que geram novas palavras e significados, pois as letras, soltas no branco da página, dançam um balé, ora se separando, ora se juntando, de modo a produzir novas e conflitantes palavras e significações. Paradoxalmente, a neve (snows) que cai agora (now), cai aqui e em algum/nenhum lugar (nowhere). 
   
Seguindo a trilha que privilegia a significação através da imagem em detrimento da lógica linear, também é recorrente na poesia de Rodrigo G. Lopes o recurso ao ideograma. Um bom exemplo é o poema peônias negras, formado por sete haicais que, seguindo a  tradição oriental, desenvolvem seus temas a partir de imagens da natureza. Imagens que, nesse caso, constituem metáforas da transitoriedade da vida e das coisas:
 
peônias negras
serenas
quase secas
 
(...)
 
o inverno
furta a flor
a cor da fruta
 
(...)
 
a tarde passa
arrasta e deixa
um rastro prata.
                 (peônias negras)
 
É importante ressaltar que a importância dada à imagem e à utilização dos recursos espaciais e gráficos não ocorre em detrimento da sonoridade, pois a preocupação com a melopéia encontra-se presente em todo o livro. Dois exemplos são os poemas Cet obscur objet du désir e Montanhas:
 

no café del prado

em barcelona
um bando de pombas
rebolam pelas ramblas
                (Cet obscur objet du désir)
 

não são nuvens

mas tão brancas
 
solitárias
(mas são tantas)
                  (Montanhas)
 
Ainda considerando a melopéia, são dignos de nota o leminskiano tudo tem sentido, onde o poeta joga com os diferentes sentidos da palavra “sentido”; e os poemas você me toca e somos, nos quais reencontramos o tema da ausência do Eu e a conseqüente solidão que permanece existindo, mesmo quando estamos lado a lado com alguém que desejamos ou no meio da multidão, conforme se vê no poema você me toca. Nele, parodiando Baudelaire, o poeta deseja uma passante que se perde na multidão, inacessível ao seu desejo. A diferença com o poema de Baudelaire fica por conta da mudança de tom. No poema dele, esse é marcado pelo tormento resultante da efemeridade das relações e pela insatisfação do desejo; no poema de Rodrigo, é marcado pela aceitação da efemeridade e do caos da vida moderna que, ao invés de atormentar o flaneur/vouyer, docemente o entretém nas horas vagas. O desejo que antes expressava a angústia da solidão e do vazio em meio ao caos e à multidão do mundo moderno torna-se um sentimento tão passageiro e supérfluo quanto a sedutora passante:
 
você me toca
 
você me toca
como quem troca
de roupa
 
você me provoca
e troça
dessa minha doce
distração
 
pra que tanta pressa
você
mulher na multidão?
           
 
Solarium
Na terceira parte, intitulada “Solarium”, a busca de uma nova linguagem se faz principalmente através da vertente dionisíaca. Diversamente do que vimos nas duas primeiras partes, o autor deixa de privilegiar o planejamento racional e objetivo, que caracteriza o concretismo e a poesia de Mallarmé, em favor dos impulsos e divagações, nem sempre conscientes, que caracterizam uma dicção muito próxima daquela que marcou a poesia de Rimbaud e da geração beatnik. Nela, predominam longos poemas de versos livres, em que o texto, aparentemente linear, se desenrola de modo fragmentário como em um fluxo de consciência, sem que haja um único fio condutor do discurso e, portanto, sem maior coesão e coerência.
 
A menção ao uso de drogas, como acontece no poema Phanopium, cujo título pode ser interpretado como a aglutinação de phanus e/ou phanopéia mais opium = ópio, constitui um outro índice de afinidade com a poesia de Rimbaud e dos Beatniks. Na busca de uma nova linguagem, Rodrigo Garcia Lopes procura despersonalizar a linguagem através da negação de qualquer centro discursivo, de modo que a representação ocorra através de uma sintaxe descontínua e fragmentada – o que resulta em um processo esquizofrênico de captação alegórica, sinestésica e ideogrâmica do que costumeiramente chamamos de mundo real (o que é claramente tematizado no metapoema Processo). Com tais procedimentos, perde-se a noção de tempo e espaço, os sentidos se misturam e se espera que a personalidade desapareça.
 
Em vários poemas desta parte do livro, também encontramos a tematização da cidade como caos e a negação do consumismo, da mecanização, da violência e da exploração presentes na sociedade burguesa. A América urbana e tecnológica, massificada e violenta, é comparada à cidade de “Roma em chamas” (América # 2). Nas megalópolis – representadas no poema New York – não há mais espaço para a reflexão, o sentimento e a utopia. Nelas, “a serpente das ruas arrasta seus ruídos, raps & neons / devora um real que acumula seus pós / sobre nós, camadas / de civilização sem fim e sem saída”.
Caos urbano digno do cenário de filmes como Blade Runner, a cidade de New York representa a demência e a desumanização de uma sociedade regida pela racionalidade pragmática, pela idéia do progresso material e técnico que leva o homem à escravidão dos relógios. Nesse mundo fragmentado e sem sentido, que também encontramos no poema “M”, os seres humanos são reduzidos ao estado de mercadoria, cujas relações são medidas pelo moderno desing do corpo e pela produtividade do prazer tecnológico.
 
Em busca de phanus
 
 A constância dos temas da dissolução da realidade e do Eu não deve ser vista apenas como uma crítica ao padrão de vida moderno que, regido pela incessante produção de novas mercadorias e valores, dissolve e pluraliza as identidades em um caleidoscópio de máscaras. Outro importante aspecto que envolve o motivo da despersonalização  também se encontra na afirmação da primeira das quatro grandes verdades da mundividência budista, que perpassa todo o conjunto da obra.
 
Segundo a filosofia do budismo tudo é sofrimento, pois “não há coisa alguma que não esteja submetida a incessantes mudanças. E quanto mais o homem se esfalfa, procurando alguma coisa permanente a qual se possa apegar neste mundo efêmero, tanto mais sofre” (Gira, 1992:53). A verdade está no karma, que leva o homem ao infinito ciclo de renascimentos e mortes neste plano cósmico marcado pela imperfeição e pelo sofrimento. E outra não parece ser a lição que encontramos em tantos poemas de Rodrigo Garcia Lopes. A transitoriedade que marca a existência dos seres também se estende ao Eu do indivíduo, pois para o budismo esse não possui unidade e permanência, o que nega a idéia de uma essência humana. Para Buda, a busca de um Eu permanente, ou seja, da realidade interior e do Absoluto, “não era diferente da procura da Fonte da Eterna Juventude. (...) E na mesma proporção em que um homem gasta suas energias em uma busca dessa espécie, se afasta da possibilidade real que teria de se libertar do samsãra” (Gira, 1994:55). Daí resulta a constância dos temas da busca infrutífera do Eu e da sua ausência, assim como da solidão e da estranheza entre os seres, mesmo quando eles estão lado a lado, numa cama ou na multidão.
 
(...) O que
carregamos são espelhos que refletem sempre
o diferente, enquanto nós, eu e você
mudamos juntos. Nuvens
                                               (Outras praias).
 
Na caminhada em busca da libertação, de acordo com as outras três nobres verdades, deve o homem abrir mão dos seus desejos e ouvir o que o “(...) outono / tem pra nos dizer: / tempo de se desfolhar / – cores, peles, percepções”, conforme lemos em Um poema para o deserto.
 
Na busca da iluminação, deve-se renunciar ao desejo de possuir um Eu permanente através de um comportamento reto, de uma disciplina mental em que a concentração constitui o caminho para a “eliminação de tudo aquilo que alimenta a ignorância do homem” (Gira, 1994:91). Daí a necessidade de se eliminar os “cinco agregados” que constituem aquilo que percebemos como um indivíduo: a matéria, as sensações, as percepções, os desejos e a consciência, em suma, todos os vínculos que ligam o homem ao mundo material. Somente assim, por esse processo de ascese e meditação, em que “(...) é preferível / eliminar este pensamento e deixá-lo livre” (Improvisos), é possível o encontro com a sabedoria, com a iluminação que caracteriza o nirvãna.
 
É devido ao diálogo com a filosofia do zen-budismo que encontramos constantemente, nas três partes da obra, a presença das imagens do outono e das folhas secas que o vento leva e que sempre se renovam, revelando em sua alegoria o eterno movimento cíclico da vida – conforme vemos em O eterno renovo do mesmo (poema concreto e metalingüístico pertencente a Dioramas). Desta forma também se explica a obsessão pelo deserto “com seus rios secos desde o começo / com sua sede sonora / com o sal que não pergunta / do sentido / deste paraíso perfeito” (Um poema para o deserto) em que não há “nenhum milagre a não ser / as coisas como são” (Sedona), onde “tudo é phanus” (O fotógrafo), ou seja: templo, iluminação – conforme o significado grego.
 
 Como vemos, o orientalismo e especialmente o zen-budismo atravessam o livro inteiro, convivendo com a racionalidade ocidental – tão bem representada por Mallarmé e pelo concretismo –, com a contracultura do movimento beatnik, e com a fragmentação alegórica de um mundo moderno (ou pós-moderno?) em ruínas. Em meio a este caos e à esquizofrenia geral, fica, no fim, a sensação de que o poeta luta entre ser um zen-fotógrafo – procurando congelar em suas iluminuras o tempo eternamente cíclico da existência – ou então ser um câmera-zen, almejando registrar o fluxo ininterrupto e fragmentário da existência.
 
 
Marciano Lopes 
 
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Referências Bibliográficas
GIRA, Dennis. Budismo: história e doutrina. São Paulo: Vozes, 1992.
LOPES, Rodrigo Garcia; MENDONÇA, Maurício Arruda. Iluminuras: poesia em transe. In: Rimbaud, Arthur.  Iluminuras: Gravuras Coloridas (Tradução de Rodrigo Garcia Lopes & Maurício Arruda Mendonça). São Paulo: Iluminuras, 1996.
 
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 Nota:   
 
Texto escrito originalmente para a saudosa revista eletrônica No Meio do Caminho, em Maio/2004.

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