domingo, 16 de agosto de 2009

Provocação: Leão-de-chácara X O cobrador





Para pensarmos a literatura de João Antônio, é interessante o confronto com a de Rubem Fonseca, visto que ambos representam personagens de um mesmo universo e têm como tema a violência. Para isso, seguem algumas considerações (e provocações) desenvolvidas com base em uma leitura comparada entre Leão-de-chácara (1974) e O cobrador (1979).
Os contos do livro Leão-de-chácara, de João Antônio, têm como personagens principais os pobres e marginalizados que habitam o “submundo” da grande cidade, no caso, o Rio de Janeiro dos anos 60. Entre eles, se destacam as figuras do malandro, do leão-de-chácara, dos pivetes, meninos de rua, prostitutas, boêmios e traficantes. São esses seres anônimos e excluídos com os quais João Antônio se identifica. E neste ponto reside a grande diferença – a favor de João Antônio, em minha opinião – entre a sua literatura e a de Rubem Fonseca, que também mergulha seu olhar em um universo similar, mas o faz sem se identificar com os seres representados, ou seja, sem nutrir carinho ou compaixão por esses tipos humanos. Daí que os personagens de Rubem Fonseca sejam, em geral, tipos sem alma, estereótipos, enquanto os de João Antônio, mesmo sendo tipos, Possuem uma dimensão humana que os engrandece e os aproxima dos personagens de Dostoievski.
Em comum, temos a incorporação da linguagem coloquial, de palavrões e especialmente gírias. No entanto, enquanto Rubem Fonseca apresenta uma frase mais curta e enxuta, o que dá um ritmo rápido ao texto, a de João Antônio é longa, pois, em geral, dá vazão ao monólogo interior dos personagens ao mesmo tempo em que explora estilisticamente a riqueza do vocabulário destes grupos sociais. Por isso é comum encontrarmos em suas narrativas longas enumerações como no exemplo abaixo, retirado do conto “Leão-de-chácara”:


(...) O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado amador, loque, cavalo de teta, zé mané dando bandeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado, quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil. Eu aturando, ô pedreira! Para mim a noite vai ser de murro.

Essa estilização da linguagem popular, que lhe dá uma dimensão e uma grandeza literárias, faz lembrar a literatura de Guimarães Rosa, que faz o mesmo com a linguagem popular dos sertanejos. Por tal motivo, é lícito aproximarmos ambos no que diz respeito à renovação da linguagem brasileira através de uma literatura que faz do “regionalismo” uma virtude e não um defeito de estilo. Defeito na medida em que grande parte da literatura regionalista empobrece a narrativa com a preocupação de simplesmente registrar aquilo que é típico de uma comunidade ou região sem dar uma dimensão humana e universal a esse espaço e personagens, além de marcar a linguagem deles como a do “outro”. Linguagem errada, não culta, que o narrador em terceira pessoa – superior e culto – não assume como sua. Diversamente dos narradores de João Antônio, que, sendo protagonistas, assumem a palavra e utilizam o discurso em primeira pessoa como forma de afirmar a sua própria identidade.
Ainda seguindo o confronto com a narrativa de Rubem Fonseca, outra diferença estilística e ideológica a favor de João Antônio se encontra na maneira como ambos representam a violência em seus textos. O primeiro a exibe nos mínimos detalhes, dando vazão a um estilo nomeado por Alfredo Bosi de hiperrealismo e que tem nos contos “O cobrador” e “Feliz ano novo” (ambos pertencentes originalmente aos livros homônimos) dois ótimos exemplos. João Antônio, por sua vez, apenas aponta para a sua existência, sem a preocupação ou o intento de transformá-la em espetáculo útil à catarse dos leitores e ao enriquecimento seu e dos editores. Ao proceder desta forma, João Antônio não contribui para os interesses da mídia e do mercado, mas, diversamente, para o enriquecimento da arte. Talvez por isso Rubem Fonseca faça tanto sucesso, enquanto João Antônio permanece à sombra, injustamente esquecido nestes dias em que a literatura sobre a violência urbana e o romance-reportagem (que alguns andam chamando de antropológico), no estilo de Cidade de Deus e Abusado, fazem tanto sucesso.

Para finalizar, é bom lembrar que esse texto resulta mais de impressões de leitura do que de uma análise criteriosa. Seu objetivo maior é resgatar a lembrança da obra de João Antônio e provocar aqueles leitores que gostam de uma boa polêmica.

marciano lopes
DICAS

Visite o seguinte site para conhecer a obra de João Antônio. Ele é fruto do trabalho de pesquisadores da Unesp, campus de Assis (SP), universidade que adquiriu todo o acervo do autor e que tem desenvolvido continuamente pesquisas sobre a sua obra com a participação de estudantes de graduação e pós-graduação:
http://www.cedap.assis.unesp.br/joao%20antonio/index.html

Leia também o excelente artigo “Genial e desconhecido: por que João Antônio, escritor premiado, caiu no esquecimento”, de Carlos Juliano Barros, publicado na Revista Problemas Brasileiros n. 368, março/abril de 2005, no seguinte endereço:
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=207&breadcrumb=1&Artigo_ID=3275&IDCategoria=3547&reftype=1

2 comentários:

  1. Talvez o "Carinho" que Rubem Fonseca possa nutrir por suas "pequenas criaturas" esteja no âmbito da exposição do âmago do ser humano, que na maioria das vezes não passa da essência do conteúido de seus intestinos.
    Bosta mesmo, entende?
    Quanto ao universalismo "Dostoeiviskiano", isso está presente na obra de Rubem fonseca, principalmente em um conto chamado "A Confraria dos Espadas". ali Rubem destila o melhor do universalismo, seja ele de Dostoivéski ou de Norman Mailer.
    Abraço!

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  2. Aí é onde reside a questão: no âmago do ser humano. Às vezes me parece que é bem como vc disse: "conteúdo dos intestinos": a visão do homem na literatura de RF. Mas não posso (nem quero) concondar com esse ponto de vista. Nem essencialmente bom; nem essencialmente ruim: contradição, paradoxo. Daí que prefira a ironia de um Machado do que o chumbo à queima roupa de um Fon(te)seca. rsrsrs.... Brincadeira à parte, a reticência está mesmo na visão de mundo. O fazer literário nem se discute, esse é de primeira linha...
    Ah! a maldade é universal, tens razão...
    um abraço!

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