quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Conto: O LADO ESCURO*

O silêncio é perigoso
porque nos devolve surdos
ao universo em movimento.

Ao meu grito desesperado,
a parede responde: louco.
E diz isso sem mover uma única de suas moléculas:
Solidão
.”
(Sérgio F. Endler)


O relógio marca dez horas. Pela janela enxergo a lua cheia. Sua luz é tanta que apaga o brilho das estrelas e inunda meu quarto. Então escrevo.
Passam as horas... os dias... e assim vou sobrevivendo. Registro todas as sensações. Lembranças do momento passado... passado que passa... Mantenho-me vivo? Não sei, mas escrever é a única maneira de me relacionar com os homens, seres tão racionais... A cada página que preencho marco minha existência – ao menos no papel.

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Quando o dia amanheceu e o sol surgiu por detrás dos edifícios, iluminando o quarto, já não mais existia. Despertei com o rosto ardendo. Estava banhado em suor e minha cabeça girava. Tudo parecia estranho e demorei pra reconhecer o local em que estava. O poster do “Último discurso” de Charles Chaplin. O guarda-roupa velho, sem os pés traseiros, ficava encostado na parede. Uma caixa de feira, que servia de criado-mudo, ao lado da cabeceira da cama. Sobre ela, vários objetos: um livro do Camus, um cinzeiro, uma agenda, um isqueiro, uma caneta e um relógio despertador que já não funciona mais desde a última vez em que o atirei contra a parede. Porra! Não há mais cigarros!

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Não tardou para que iniciassem os ruídos da rua. Minha cabeça girava... cada vez mais girava.... girava... girava... a boca amarga... seca... Gosto de derrota? Não. Morte. Morte final de uma agonia lenta, de tantas outras mortes, como a de um tronco que é consumido aos poucos pelo fogo até virar brasas, essas brasas virarem pó e depois se perderem, levadas pelo vento.

Penso em levantar-me. Pra quê? Pra cumprir com minhas obrigações de bom cidadão, repetir a rotina de todos todos os dias? Não. Não levantarei, não sairei deste quarto. Não sairei pra ir perder-me na multidão. Não me fantasiarei com terno, gravata e maleta executiva. Não me enclausurarei entre quatro paredes para carimbar papéis e digitar. Digitar tudo o que o chefe diz, tudo o que o chefe quer, toda a sua verborréia! E arquivar. Arquivar é muito importante! Arquivar tudo o que não importa, que pra nada serve. Como os sentimentos e as reinvidicações de vida e justiça. Não importa. Nada importa. Todos me enganaram. Me iludiram. Fizeram-me acreditar na beleza e no amor, num deus bom e misericordioso que a todos ouve e perdoa. Mentira! Uma grande farsa! Só o mal é sábio. O amor é ilusão, pipoca para macacos. E eu não sou macaco!!!

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Ao olhar a agenda caí numa gargalhada que ressoou sinistra. Peguei o isqueiro e comecei a queimá-la. Página por página, nome por nome, iam todos ardendo aos poucos e virando brasas e cinzas... Ah! Naquele momento todas aquelas pessoas estiveram em minhas mãos! Eu as queimava paulatinamente. Torturava-as. Pagavam pelo mal que me fizeram. Principalmente uma, que mais que todas me enganara. Dissera-me que o amor era tudo. Cínica. Hipócrita. Sufocara-me com seu amor egoísta, com seu autoritarismo me anulando, transformando o livre fluir dos corpos num jogo de convenções. Tudo estava acabado. Nomes, endereços, esperanças, ardiam perante meus olhos e se transformavam em belas cores quentes na manhã fria...

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É madrugada. A rua está deserta e há um grande silêncio povoado de vozes, lamentos, sussurros vindos do nada, assim como a luz que projeta minha sombra gigantescamente horrenda sobre as paredes nuas.

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Levanto-me cambaleante e caminho até a janela. Na rua a multidão se espreme pelas calçadas, por entre carros e edifícios num vai e vem incessante. Parecem formigas, desorientadas, pequenas, distantes... distantes. Minhas pernas fraquejam e é necessário sair da janela pra não despencar. Não enxergo nada. Arrasto-me pelas paredes, agarro-me a elas, mas permanecem frias, impassíveis...
Olho pra lua. É bela e fria, impassível. Em nada alivia minha solidão. Fico a imaginar o que se esconde no lado escuro da sua beleza. Provavelmente o lado louco da lua. Demoníaca na beleza e na loucura, será um feitiço de satã para nos encantar? Que aconteceria se um dia o seu lado escuro se mostrasse pra nós?

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Reiniciam os sons da construção. O barulho faz com que as paredes rodopiem e cresçam sufocando... comprimindo... deixando meu corpo doido e doído e me dando vontade de gritar gritar gritar! Mas o grito não sai! fica preso na garganta no peito no coração enquanto a parede diz “Não sois máquinas; homens é que sois”! e me olha com seus olhos de ternura e piedade mas eu não quero piedade! não não quero compaixão! e despedaço o relógio na cara do Chaplin! Mantenho então os olhos fixos no teto branco mofado e vejo a vida passar como um filme um carro de fórmula um que se despedaça na parede enquanto eu menino ingênuo mas não do engenho brinco de forte-apache com os índios maus cercando o meu quarto e os soldados da sétima cavalaria a caminho e os meus pais se engalfinhando em brigas e mais brigas... depois vem o natal repleto de bebidas carnes presentes e hipocrisias odioso natal!! ao menos o ano novo é materialista por excelência tudo uma merda ambos uma merda detesto família parentes não os quero!!! sobrevivo melhor sozinho e brigo melhor sozinho como fazia no colégio a cada ano era um novo nunca esquecerei a briga com o diretor e o tombo nos cem metros... todos rindo rindo...

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Acordo angustiado. Estou ofegante. Sinto frio e a noite escureceu. Aos poucos o silêncio transforma-se em desespero... Milhares de vozes povoam o ar... sussurram a minha volta, nos meus ouvidos... os gritos e lamentos cortam a noite e penetram minha alma com a agudez do punhal frio fio da navalha tapo os ouvidos e fecho os olhos mas não adianta enfiar a cabeça embaixo dos travesseiros pois é impossível não ver a luz não ouvir os berros os sussurros os lamentos os pios agourentos os miados os latidos tudo tudo tudo girando em minha cabeça como um carrossel de luzes vermelhas sangrentas berrantes e a ira dos felinos com seus desejos e lamentos tão mais fortes que dilaceram minha carne minha alma oprimem meu peito e eu quero gritar mas um nó na garganta me impede me sufoca e a cabeça gira gira gira com tudo dançando a minha volta rodopio e me jogo ao chão e me bato e me rolo e me levanto e num salto desesperado pulo até a porta tento abri-la mas ela está trancada! trancafiada!!! então esmurro esmurro esmurro e grito! finalmente grito!!!! grito que ecoa e ressoa se perdendo na noite enquanto as paredes me respondem sem mover uma única de suas moléculas: louco!!! esmurro-as esmurro-as esmurro-as até manchá-las de sangue por todos os lados e não bastasse arremesso várias vezes a caixa contra elas mas mesmo manchadas mesmo sangrando mesmo feridas permanecem imóveis frias impassíveis distantes...

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Demorei pra reconhecer o lugar onde me encontrava. Era um quarto branco, de paredes nuas e limpas. Na realidade só havia uma cama de ferro, branca, na qual me encontrava deitado, uma cadeira e um criado-mudo, também brancos e de metal. Tentei levantar-me, porém estava imobilizado. Fazia frio.

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Largo a caneta. Lá fora é só escuridão. Deve ser o outro lado, o outro lado da lua.


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*Nota: Com esse conto, salvo algumas pequenas modificações, fui premiado com o segundo lugar no Concurso Literário DCE-FURG 15 Anos de Contos e Poesias em 1987 (22 anos!). Embora não tenha nada de original (e será isso possível nesses tempos de pós-tudo?!), ainda hoje gosto dele. --- Marciano Lopes ---

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