quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Apesar dos fogos, ainda atual.


CABEÇA DE PORCO, CABEÇA DINOSSAURO E OUTRAS CABEÇADAS *Aqui não tem terremoto. Aqui não tem revolução. É um país abençoado onde todo mundo mete a mão.
("Bem Brasil", Premeditando o Breque – 1985)

Pois é, passados mais de dez anos, parece que a música do Premê (como é conhecida a banda) continua atual, mas com uma ressalva: já não dá mais pra dar aquela gargalhada de antes. Continuamos sem terremoto (salvo alguns leves tremores) e sem revolução, mas estamos chegando lá, logo seremos primeiro mundo, afinal, pelo menos agora já temos terrorismo. Só não vê quem não quer. A guerra civil, antes mais restrita às favelas de Rio e São Paulo, por um lado, e à luta no campo, por outro, começa a tomar foros nacionais... Os ataques coordenados pelo PCC hoje extrapolam o espaço da grande São Paulo e até mesmo do estado de São Paulo. E a tática é evidentemente terrorista, mas com uma pequena desvantagem com relação a outras ações do mesmo gênero espalhadas pelo nosso azulado planeta: a ação não tem nenhum programa político, nenhuma plataforma ou proposta concreta que aponte para uma possível saída do buraco. É apenas uma truculenta reação à truculência do Estado e aos séculos de opressão, exclusão e miséria. E as cabeças de dinossauro com suas panças de mamute – que mandam, desmandam e sugam este país – parecem não querer ver que o barco tá tá tá descendo a corredeira... Mas por que fazer algo pra mudar a aviltante realidade brasileira se do jeito que tá tá tão bom e tá tá dando tanto lucro... Segundo o ponto de vista – polemicamente cristão – do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-Subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e ex-Secretario Nacional de Segurança Pública, a violência e a estupidez dos excluídos não é aceitável, mas deve ser perdoada, pois expressa a revolta de quem nunca teve uma chance efetiva de ter sua identidade, cidadania e dignidade respeitadas. Diversamente, a violência das elites – que lucram com a corrupção, a desigualdade e a ignorância – é inaceitável, pois nada a justifica.

Em Araraquara, preso é içado pelo teto, em um pavilhão onde 1.600 homens se aglomeram num espaço para 160. (Pequena nota escondida próxima ao canto da página C7 do jornal Folha de São Paulo, 13 de julho de 2006).
Sem dúvida, não é fácil encontrar caminhos, mas ao menos é necessário ter vontade de mudar. Para isso, o primeiro passo é reconhecer as razões do Outro, a condição indigna em que os marginalizados estão mergulhados, ou, no mínimo, abrir os olhos para a revolta e o ódio que crescem vertiginosamente, se espalhando por todo o país. A cultura da favela e dos morros cariocas hoje é patrimônio nacional – ou ao menos está se encaminhando rapidamente para esta condição. Quem não acredita, que leia os relatos feitos por Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde em Cabeça de Porco (Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2005), título cuja expressão significa “situação confusa e sem saída” na gíria das favelas cariocas. A seguinte passagem, em que Celso Athayde relata a visita a uma favela de Joinville, em Santa Catarina, é bastante exemplar disso:

Ele usava (referindo-se ao dono do morro) uma espada muito parecida com aquela que a imprensa mostrou, muitas vezes, como sendo a que matou Tim Lopes – se era mesmo, ninguém sabe. No início, achei que fosse coincidência, mas quando começamos a filmar. Percebi que eles usavam as mesmas expressões do Rio de Janeiro. Chamavam os inimigos de “alemão”, diziam-se do “Comando Vermelho”; seus inimigos eram nomeados “Terceiro Comando”, e muitas outras gírias totalmente cariocas eram empregadas. Eles reproduziam com precisão o dialeto das favelas cariocas. Era a primeira vez que tínhamos visto um caso como esse, parecia que os comandos do Rio de Janeiro tinham franchaises espalhadas por lá (Cabeça de Porco, p. 55).

Aliás, não é preciso ler este e outros livros do gênero para tomar consciência desta realidade, basta ler criticamente os jornais. Entretanto, é inegável que livros e documentários como Cabeça de Porco, O abusado, Falcão - meninos do tráfico, Cidade de Deus e Carandiru (os dois últimos levados ao cinema) podem contribuir em muito para que a classe média e as elites possam ver a cara deste Outro Brasil sem os estereótipos da imprensa e do poder estatal. Estereótipos que reduzem os excluídos à condição de bandidos e monstros (engraçado, quando se trata de criminosos do colarinho branco, que roubam milhões e também matam, digo, mandam matar, tais palavras não são usadas...) e assim promovem a elevação do muro que separa estes brasis e garante a ilusória tranqüilidade do cidadão, conforme argumenta Luiz Eduardo Soares. Em sua opinião, aquele, juntamente com o Estado, fica desresponsabilizado pelo agravamento da barbárie. Afinal, malandro sem-vergonha, ladrão, viciado e assassino são apenas os outros... Quando algum fato similar ocorre em nosso meio, trata-se de uma aberração, algo inexplicável, algum desvio genético ou trauma de infância... O MAL se encontra apenas no Outro... A apologia – feita via mídia – do poder, do sexo, do luxo, do jeitinho brasileiro, do consumo desenfreado como fórmula de felicidade estranhamente não diz respeito ao cidadão, mas somente ao Outro... Não queremos olhar a nossa face obscura, e assim muitos de nós arrancamos nossos olhos como se fôssemos um Édipo às avessas. Como esperar que as pessoas que não têm nada a perder, que não participam nem nunca foram convidadas a participar do pacto social compartilhem do mesmo?! Como esperar que estas pessoas respeitem as leis e a alteridade se nunca tiveram a chance de saber o que é isso e, pior, se vêem todos os dias aqueles que não precisariam agir desta forma fazerem tais barbaridades? Quando muitos “bandidos” vão incendiar um ônibus, mandam que seus passageiros saiam, pois o alvo não são eles. Mas quando a polícia entra na favela, muitas vezes entra atirando para perguntar depois.


(...) em São Paulo, em 2003, houve 1.191 mortes provocadas por ações policiais, mais de 65% delas com características de execução. Em 2004, houve 984; em 2005, foram 807 mortes (“Estes criminosos não têm ideologia” – entrevista de Luiz Eduardo Soares concedida a Pedro Souza Tavares, Diário de Notícias, 21/6/2006, p. 18).
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:A manchete da Folha de São Paulo do dia 13 de julho estampava em letras garrafais: “NOVOS ATAQUES DO PCC MATAM 7”. Número desprezível quando pensamos no número de favelados – muitos dos quais não são soldados do tráfico – que foram mortos sumariamente pela resposta das polícias aos ataques feitos há dois meses atrás. Faz lembrar o discurso dos governos norte-americano e de Israel. O primeiro, em poucos anos de ocupação do Iraque, não perdeu muito mais que umas centenas de soldados – fato que é alardeado como um horror que justifica o assassinato de milhares de civis do país que tem a sua autonomia e dignidade diariamente ofendidas pelo mesmo. Com respeito a Israel não é diferente. Porque dois soldados foram seqüestrados por terroristas do Hizbollah, o governo israelense julga-se no direito de bombardear alvos civis matando inúmeros pessoas no Líbano... – e isto não é barbárie?! Muito estranha esta lógica. Talvez sejamos muito burros e cabeçudos, mas também gentis homens como Zinedini Zidane dão as suas cabeçadas – e, no caso dele, com razão, provavelmente. Afinal de contas, ele não tem sangue de “cucaracha”, né? Enquanto isso, o governador Cláudio Lembo insiste em dizer que tá “tudo dominado” (opa, foi mal!), quero dizer: “tudo sob controle”... He he he, como diz o Macaco Simão, “a genti sofri mais goza”!
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* O texto acima foi publicado em minha extinta coluna Literatura e Sociedade (do antigo site da Teracom) no dia 23 de julho de 2006. Resolvi resgatá-lo de meu baú de escritos, pois permanece atual. Aliás, há até uma coincidência de contexto: o artigo foi feito logo após a copa de 2006, última antes desta recente copa de 2010. Daí a referência à cabeçada de Zidane. Se o texto fosse escrito hoje, talvez construísse o humor referindo-me ao descontrole emocional de Dunga, dando socos e tapas no que tivesse pela frente, mas a imagem não teria o mesmo efeito e elegância...

Marciano Lopes

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