segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sai pra lá, Maria Kafka!


Abaixo, o texto que deu origem à aula-espetáculo "Sai pra lá, Maria Kafka", de José Pedro Antunes. Aula-show que será apresentada na 2a JIOP, dia 7 de outubro.



“Sai pra lá, Maria Kafka!”

José Pedro Antunes (Unesp-Araraquara)



“Sai pra lá, Maria Kafka!”, foi o que ouvi dizer no quarto ao lado, juntamente com o espoucar de vassouradas nervosas (ou era um chinelo que cantava na parede?). O chega-pra-lá tinha por alvo uma reles barata, bem brasileira, naquele hotelzinho de terceira, Deus sabe onde, e não o “inseto monstruoso” em que se viu transformado Gregor Samsa, ao despertar (não apenas na tradução feita diretamente do alemão por Modesto Carone), “de sonhos intranqüilos”.
Houve uma vez os INIMIGOS DO REI e uma canção de sucesso sobre uma barata chamada Kafka, com o refrão genial: “Vem K. ficar comigo!”. Mas isso foi muito depois de ter havido, para infelicidade de muitos, como querem outros tantos, um certo Torrieri Guimarães. Esse entrou para a história por ter traduzido quase toda a obra do escritor tcheco “diretamente do original americano”. Conheço quem o defenda, pessoas que não se sentem lesadas, por ter feito o que lhe foi possível fazer a seu tempo.
Ocorre que, depois dessa sua famigerada tradução, as letras pátrias se viram infestadas por Joões e Marias Kafkas, fato que levou o poeta Carlos Drummond de Andrade a se sair com uma tirada de gênio: “Kafka, um autor que se tornou mundialmente famoso por imitar diversos escritores brasileiros”. Quem nos conta essa, entre tantas outras impagáveis, é o Otto Maria Carpeaux de “Meus encontros com Kafka”, um ensaio memorável; ele que, aos 21 anos de idade, enfrentou dificuldades em seu primeiro encontro com o franzino Franz, na época, lá como cá, tão desconhecido quanto ele. Foi numa festa em Berlim, povoada de celebridades, que ele quis saber, de um amigo, quem era o rapaz de aparência soturna, isolado a um canto. Ouviu que era o autor de alguns contos esquisitos, um certo KAUKA, não tinha nenhuma importância.
Ao rever o filme O Processo, de Orson Welles, eu me pergunto como, se e quanto o criador de Cidadão Kane não terá metido o pé na mesma canoa furada em que terá naufragado o bravo Torrieri Guimarães. O filme também surgiu num momento em que, pela mão dos editores americanos, Kafka em definitivo se instalava na Weltliteratur, mais sisudo e soturno, com toda certeza, do que aquele rapaz magrinho, o mesmo rosto da foto que tanto intrigara o jovem Peter Handke (“se espinhas não tivera?”), sobrancelhas espessas, um principiante, incógnito no grand monde literário berlinense.
Foi Roman Polanski, quando da montagem de A Metamorfose, em Paris, já ao final do século passado, ele próprio no papel de Gregor Samsa, quem chamou a atenção dos críticos para a não compreensão de algo tipicamente eslavo, um humor lingüístico que se houvera instalado nas entrelinhas do alemão protocolar do autor tcheco que escrevia em alemão, com expressões capazes de sugerir coisas absurdas, incompreensíveis talvez para ouvidos ocidentais, como a idéia de um sujeito qualquer, um obscuro e cumpridor funcionário de uma Companhia de Seguros, um belo dia, acordar transformado num inseto. Ainda mais, eu acrescentaria, com a contribuição milenar de todos os erros, passando pelo auxílio luxuoso das traduções indiretas e do caótico boca-a-boca que assegura a permanência das obras literárias, seja como êxito, seja como fracasso.
Ou não será que o Ocidente, com o ardor de quem ainda não encontrou suas palavras, ansiasse por visões que o ajudassem a compreender situações que, a partir de então, seriam descritas como “kafkianas”, fantasmagorias de uma vocação totalitária latente, pronta para explodir, pipocar por toda parte ao longo de um século, que hoje, pelo retrovisor, e cheios de incredulidade, tentamos localizar na bruma espessa do tempo? Welles optou por uma interpretação sociológica, bem ao gosto dos jovens que ocupariam as ruas naquela década prodigiosa.
Para falar da importância de Kafka, Carpeaux lembra que só Dante e Shakespeare chegaram a tanto, ter seus nomes incorporados, como adjetivos, ao falar cotidiano das pessoas em todo o mundo. Entre “cenas dantescas” e “tiradas shakespearianas”, para não remontar aos “porres homéricos”, bem anos 60, o mundo aprendeu a conviver com o “absurdo kafkiano”, que alguém já achou de dizer “tão nosso”.
Eu nunca havia imaginado uma trilha sonora para Kafka, como se sua linguagem protocolar não comportasse partitura, como se os pesadelos dispensassem melodias. Em O Processo, de Orson Welles, a surpresa de vê-lo pontuado pelo patético do Adaggio de Albinoni.
Para os estudiosos, e alguns sequer conseguem aceitar tranqüilamente que a autoria seja mesmo de Albinoni, o órgão foi acrescentado ao que restara de um fragmento barroco, alguns compassos e a linha do baixo, supondo que originalmente se destinasse ao uso religioso. No filme, é inevitável que isso aconteça, a sonoridade remete à longa tradição da interpretação teológica do escritor tcheco.
Contrariando o desejo do amigo, Max Brod não apenas deixou de queimar-lhe os escritos inéditos, como tratou de cercá-los, na publicação, de uma exegese tendenciosa. Criava-se um mito. Em seu artigo “Kafka nunca foi santo”, Milan Kundera documenta a metamorfose de Kafka em sisudo sofredor tísico e assexuado, mártir, cordeiro pascal que viveu e morreu pela humanidade.
A página de entrada de um site – que já nem está mais no ar, e da qual talvez só este ensaísta detenha uma cópia –, sugeria um altar: sobre fundo preto, a foto do escritor, efígie ovalada ao centro, ladeada por dois castiçais, duas velas bruxuleantes. Por mim, a página traria, à guisa de epígrafe, uma frase de Peter Handke em Fantasias da Repetição, um dos volumes que fez publicar com suas anotações diárias: “Eu odeio Franz Kafka, o Filho Eterno!”
Mas o filme de Welles traz uma outra música, mais próxima da ausência de música que eu imaginara: 850 máquinas de escrever, espalhadas sobre 850 escrivaninhas, tecladas simultaneamente por 850 funcionários no cumprimento de suas 850 rotinas cinzentas, rigorosamente idênticas.
Essas e outras cenas, que o cineasta, por problemas de última hora (Guerra Fria), não teve permissão para rodar na Iugoslávia, foram transferidas para os suntuosos espaços vazios da Gare d’Orsay, em Paris, então desativada. Na montagem, Welles chega a fundir, numa única cena, monumentos arquitetônicos de três diferentes cidades: Zagreb, Paris e Milão. Num cenário de pesadelo, tudo termina num único e uniforme espaço desumanamente burocratizado, o espaço da Lei, em cujo interior, povoado por uma hierarquia indevassável de juízes invisíveis e pela estropiada multidão dos sentenciados, o processo morosa, incompreensível e interminavelmente se arrasta.
Condena-se o viés sociológico do filme, mas, com todos os senões, ele traduz aspirações de uma época, os anos 60. De quebra, ajuda a superar a fraude teológica e a extensa folha de desserviços prestados à literatura - não só de Kafka - pelo recurso à psicologia.
As gargalhadas que Peter Bogdanovich ouviu de Welles no escuro das cinematecas européias fazem supor que, para ele, o "absurdo kafkiano" tivesse algo de afetação, de comédia, de pantomima.
Tanto em Kafka, como em Welles, as cenas finais, com Joseph K. sendo arrastado ao local do sacrifício por dois algozes de pastelão, são dignas dos melhores cartunistas.
Nos desenhos do próprio Kafka, sugestões de ordem não-verbal parecem comentar seus ataques de riso ao ler passagens do texto para os amigos.
Kafka deixou de ser apenas um escritor, diz Peter Handke, para se tornar um personagem da humanidade. Esboço do homem comum, esse ser coletivo, seu feito só se compara ao de um outro grande artista do século XX, outro grande humorista: Charlie Chaplin.
Recém-egressa do papel de Sissi, a imperatriz adolescente do Império Austro-Húngaro, que provocou suspiros e lágrimas de esguicho por três episódios de uma série famosa, que salto não terá sido, para Romy Schneider, trabalhar com Welles em O Processo.
Entre os guardados de um sótão, sua personagem, Leni, pratica uma das raras cenas de sexo de uma obra, a de Kafka, repleta de alusões vagamente homoeróticas e assombrada pelo pavor adolescente ante a descoberta, pela mãe, dos lençóis maculados por poluções noturnas ou pelo vício solitário.
A questão, para Peter Handke, repito, era saber se o “Filho Eterno” nunca terá tido espinhas. Em O Castelo, o sexo é praticado atrás do balcão da estalagem, entre caixotes, garrafas e poças de cerveja.
Assim, é atrás de migalhas que se esfalfam os exegetas da vertente psicanalítica, que, sem ganhos expressivos, só faz engrossar a enxurrada das interpretações psicologizantes. E isso, muito depois de Hans Mayer ter perpetrado o seu: “Kafka ou Pela última vez psicologia”.
No plano da realidade, Romy contracena com “o filho que era a mãe” (na piada, esse o título de Psicose, de Alfred Hitchcock, em versão portuguesa). A escolha de Anthony Perkins para viver Joseph K. nunca foi engolida pela crítica. Sua atuação, considerada histérica, costumava ser recebida como traição à sobriedade da linguagem protocolar de Kafka. Só depois de morto, com tudo o que se soube acerca de seus complexos, angústias existenciais e homossexualismo problemático, é que ela passou a ser redimensionada.
Na Trilogia Kafka, que Gerald Thomas criou nos anos 80, consigo localizar, de memória e muito à distância, algo do humor que Polanski aponta como perdido para a recepção ocidental. Tendo sabido apreender o elemento caricatural da criação kafkiana, Thomas povoou de cinzentas personagens de pantomima a imensa biblioteca que concebeu como cenário. Aos pares ou em trio, elas passavam o tempo a tricotar ou a repetir, mecanicamente, sincronizadamente, os mesmos gestos grotescos.
Em O Veredicto, há outra cena que talvez não tenha sido ainda devidamente percebida como de comédia. De camisola, enfermo e dominador, o pai ancião saltita acintosamente sobre o leito, para melhor torturar o filho, que, em desespero, desce correndo a escada, chega até a rua, apressa-se até a ponte, de onde haveria de se projetar, para cumprir a formidável condenação paterna que sobre ele desabara. Num típico epílogo kafkiano, o último parágrafo faz saber que a cidade vivia o seu normal, com o tráfego a fluir regularmente pela ponte e arredores.
É a mesma tranqüilidade com que a família, liqüidado o “inseto monstruoso”, sai a passear pelo parque ensolarado, ou o artista da fome, em narrativa homônima, é varrido com a palha da jaula onde ocupara o lugar de uma pantera.
A interpretação sociológica, que norteou a leitura de Welles, teria vida longa. Pelo viés da Teoria Crítica, que, redescoberta pela geração de 68, continua a inspirar gerações de leitores, o autor tcheco não faz senão relatar o percurso sinistro de uma sociedade que caminha para ser totalmente administrada.
Mas a gravidade das conseqüências não descarta o grotesco dos desdobramentos possíveis. Não deixa de ser engraçada, como no filme de Welles, a visão futurista dos enormes espaços fascistas, a abrigar miríades de outras Marias Kafka.
Das experiências totalitárias de direita (nazi-fascismo) e de esquerda (socialismos diversos), ao neoliberalismo econômico que veio a um só tempo coroar e pôr em xeque o capitalismo, sabe-se quanto os tropeços de um pensamento único e as trapalhadas da burocracia podem servir de inspiração ao humor dos cartunistas. Haja inseticida! Ou vassouradas!

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