terça-feira, 8 de junho de 2010

Memórias de um São Leitor

O texto que segue foi escrito para a disciplina de "Ensino de Literatura", ministrada pelo prof. Dr. Benedito Antunes, da pós-graduação em Letras da Unesp (campus de Assis) em 2002. Foi-nos solicitado que escrevêssemos uma crônica discorrendo sobre nossos pimeiros passos no mundo da leitura, recuperando, na memória, as leituras significativas e a nossa trajetória inicial como leitores. Feito isso, os textos foram recolhidos pelo professor que os organizou em forma de livro, o qual foi disponibilizado para que nós fizéssemos a cópia e a leitura dos textos de todos os colegas. Com base nessas experiências, posteriormente discutimos o processo de formação de leitores, considerando os vários aspectos envolvidos, tais como as motivações para o desenvolvimento do gosto pela leitura, a seleção e a qualidade das obras em conformidade com a faixa etária, a importância da leitura na formação do caráter e da cidadania, entre outras questões. Foi uma experiência enriquecedora, especialmente por recuperar e compartilhar a memória de estórias individuais, possibilitando-nos uma reflexão crítica e humana sobre nossas formações como leitores profissionais.
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MEMÓRIAS DE UM SÃO LEITOR
(ou “Uma tentativa de recompor velhas teias espanadas.”)

Penso, às vezes, na minha querida D. Camila quando lembro da sua beleza e das patuscadas que os seus amigos lhe faziam. Nesses momentos, reflito que há muitas coisas desagradáveis na vida, entre as quais estão aquelas que nos despertam para os anos vividos e para velhice que se aproxima inexorável.
Talvez ela tenha razão e se eu lhe retrucasse que os anos vividos trazem experiência, sabedoria e maturidade, provavelmente me devolveria um olhar entre irônico e zombeteiro e me diria que nada substitui a vitalidade da juventude e o tempo que nunca se fez verbo. Pois é, D. Camila, rugas, netos e cabelos brancos são terríveis inimigos da mulher, embora para nós, seres masculinos, isso seja de menos. Afinal, sempre há moças e senhoras que muito apreciam o charme de um cabelo grisalho e a confortante dureza de um olhar calejado. Mas há outros incidentes que abalam a serenidade, seja de um homem ou de uma mulher, pelo que tem de imprevisto ou de freqüente.
Há tempos atrás, olhava com interesse e admiração uma moça sentada a minha frente num ônibus. Era loura, magra e alta – tipo Top Model. Quando fui descer, não me furtei à curiosidade de lhe ver o rosto e lancei um olhar 43. Que baque! Não sabia onde enfiá-la! (a minha cara! maliciosa leitora...). Não que meu olhar estivesse por demais ultrapassado, mas a bela moça ninguém mais era do que a prima de um amigo, linda menina que tantas vezes segurei em meus braços e sentei sobre as minhas pernas quando criança... Noutro dia, para meu desgosto, me chamaram de tio três vezes! Num dia só é demais, no final das contas eu não sou professor de primeiro grau – ôpa! ensino fundamental...
Outro indício dos tempos acontece quando certas discussões, que aos jovens e utopistas empolgam, nos enfadam e nos atormentam com seu cheiro de bolor (e se você o sente, então o caso é sério!). “É a arte revolucionária?” “A cultura de massa vai acabar com ela e com todos nós?” “E a televisão e o vídeo? Vão acabar com o cinema e a literatura?” ”Adultos devem ler best-sellers e histórias em quadrinhos?” “Deve-se tolerar a degeneração de uma obra-prima, transformada em linguagem de HQ?” Pra piorar, não fiz promessa pra São Luiz Durão, mas me encomendaram um memorial da minha vida de leitor. Eu e a Literatura. A Literatura e Eu. ?????????????? Memórias... memórias... além da minha ser fraca, me faz pensar em velhice, fim da vida, fechado pra balanço, livro póstumo... Ai!...
Pus-me a pensar, mas como sou alérgico à poeira não foi fácil espanejar o pó e o mofo do meu sótão. Muito menos ligar as pontas dos fios de velhas teias literárias... Só depois de muitos espirros e lágrimas pude sentar-me perante o espelho e concluir, com segurança e imparcialidade, que sempre fui um leitor sadio e normal.
Quando bem criança, lembro, ainda que parcamente, eu lia as histórias de contos de fadas, de valentes cavaleiros muito cavalheiros e de seres maravilhosos em edições fantásticas, de capas duras e ricamente ilustradas e coloridas! O Gato de Botas, Cinderela, Branca de Neve, O Pequeno Polegar, O Soldadinho de Chumbo, Ivanhoé, Ali Babá e os 40 ladrões etc... Lia também as histórias de Walt Disney e da Turma da Mônica, que era a minha favorita (a primeira coelhinha sem pensar em sexo!). Depois vieram os heróis do mundo moderno: o Fantasma e o Homem-Aranha eram os meus preferidos, mas não posso lembrar, sem saudade, do seriado Batman e Robin que passava à tarde na TV, pois misturava com humor as linguagens do cinema e das histórias em quadrinhos. Lembro principalmente quando os dois escalavam as paredes dos edifícios (numa montagem comicamente explícita) e a Bat-Girl saía da parede do beco pilotando sua lambretinha... Do Fantasma, gostava por ser exótico; do Homem-Aranha, por ser marginal e paradoxalmente desprezado por sua timidez, ousadia e irreverência. Lia também os livros de bolso, aqueles com histórias de cowboys, gangsters, policiais e terror. Lembro de duas séries: Tex e Gisele, a espiã (que “alemoa“!, pensava). Depois veio uma literatura mais culta e classe média: sucessos de Sidney Sheldon, Harold Robbins, Irwing Wallace e Morris West. Ah! Como esquecer de Sherlock Holmes e principalmente de Agatha Christie (Allan Poe veio depois, que é leitura mais séria). Como não lembrar d’O caso dos dez negrinhos e da elegante argúcia do detetive Hercule Poirot?
Como ia dizendo, aos poucos cheguei na literatura “séria”. Com quinze anos, creio, descobri, na casa de uma prima, a Revista do Círculo do Livro (garanto que maliciastes de novo...). Adorei – a revista – e por livre e espontânea vontade “sugeri” a minha mãe (que desde criança “alegrava” com insistentes pedidos para comprar revistas em quadrinhos) um apoio financeiro para que também me tornasse sócio do Círculo. Nessa mesma ocasião, fiz o primeiro pedido: Vinte mil léguas submarinas. Depois, por três anos a cada trimestre, eu tinha a alegria de receber a revista e a aflição de ter que escolher um livro entre tantos e tantas seções: o recomendado do trimestre, best-sellers, ficção científica, literatura brasileira, juvenis, humor, divulgação científica e outras seções que não me lembro. Além da alegria de ganhar algum prêmio, quando conseguia um sócio novo ou juntava tantos selos por compra de livros, muito me instruí. Sem dúvida, foi através da leitura das inúmeras resenhas e dos poucos artigos de crítica ou entrevistas que tomei conhecimento da variedade de gêneros existentes no universo literário, assim como do conteúdo e da importância de inúmeras obras, mesmo sem lê-las. E em nenhum momento a televisão e a cultura de massa me afastaram deste caminho de letras, muito pelo contrário. Os filmes que via na TV me despertavam a imaginação e me ilustravam de história, literatura e mitologia, entre outras coisas. Na época era comum narrativas de aventuras de heróis mitológicos – como Sansão e Hércules – e de romances românticos como O conde de Monte Cristo, Os três mosqueteiros e A ilha do tesouro – que aliás viraram seriados de TV como desenhos animados.
Atualmente, a relação com a TV e o cinema ainda se mantém, embora com uma qualidade diversa. Graças ao filme A ostra e o vento, de Walter Lima Junior
, fui sacado da minha “santa ignorância Batman!” e fiquei sabendo da existência do romance homônimo do escritor Moacir Lopes, o qual não era nenhuma novidade literária, visto que a obra foi editada pela primeira vez em 1964 (um ano antes de eu nascer). Ao lê-lo, descobri ser tão lindo quanto o filme, o que mais ainda me gratificou (pois normalmente considero os livros melhores que as suas traduções para o cinema ou TV). E, graças a esta descoberta, novamente soube quão delicioso pode ser mergulhar na literatura de ficção, posto que os anos de estudo e a prática de professor de literatura em muito contribuíram para o desgaste deste prazer.
Com a música não foi muito diferente. Através de Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Caetano e Gil, entre outros, cheguei à poesia. O incentivo da escola em que estudei a partir da 6a série até o fim do 2o grau (digo, ensino médio) contribuiu com dois concursos literários, mas a semente não estava nela. Onde? Não sei. São teias irrecuperáveis. No primeiro, em que alcancei o primeiro lugar, não tive mérito, mas o tema também era muito “quadrado”: cantar o colégio. Iniciei o poema, mas como não conseguisse levar adiante tantas eloqüentes e ufanosas redondilhas, uma amiga da minha irmã valeu-se da sua experiência poética e do seu amor pelo gauchismo para compor - impecavelmente - os versos e estrofes restantes (que foram muitos!). No segundo foi diferente. O segundo lugar foi mais saboroso, pois compus o poema sozinho (a temática era livre). Não ficou nenhuma obra-prima, é claro, mas foi um sincero e romântico poema em versos livres cujo tema era o protesto à opressão e à miséria. Valeu-me de prêmio vários livros, mas o que mais me tocou entre eles foi a antologia de Manuel Bandeira, meu querido poeta que desde então trago comigo. Assim como o velho Chico, que tantas vezes carreguei para a Lancheria, Bar e Café Universitário do Nelson (onde, pra contrariar, só dava velho aposentado e alguns dinossauros do curso de Oceanologia, que eu então empurrava com a barriga, cursando-o paralelamente ao de Letras). Lá, pedia uma cerveja ou uma cachacinha com mel, uma porção de calabresa ou lingüiça, pegava a caneta e punha-me a destrinchar os versos das canções de Chico Buarque, realizando deliciosas análises (e talvez dissesse melhor se falasse “viagens”...) que me renderam “lucros” posteriores e inesperados: um trabalho para a disciplina de Teoria Literária na graduação em Letras (que depois foi reescrito para uma disciplina do mestrado, ganhando “A” e “parabéns” da professora Dra. Maria da Glória Bordini!) e dois minicursos: A poética de Chico Buarque (apresentado na UEL) e A alegoria na canção de Chico Buarque (apresentado na UEM).
Mas nem todas as paixões se explicam de modo fácil. Assim foi com Albert Camus, cuja obra O estrangeiro eu li com 16 anos, creio. Não sei como a descobri nas prateleiras da biblioteca do clube onde era sócio-atleta (praticava atletismo e jogava xadrez pela SOGIPA) e nem porque a retirei para ler. Mas foi "impactante". Depois de sua leitura eu sabia que não mais seria o mesmo. E assim foi.
Hoje, como já disse, não tenho tanto prazer e tantas descobertas “essenciais” no trato com a literatura. Talvez devido à preocupação com tantas teorias a estudar; talvez devido à “análise, que estraga a primavera com a anatomia das flores”, conforme já escreveu Raul Pompéia, comprimido por seu temperamento romântico, de um lado, e a necessidade da técnica que o mundo científico e sério da época exigia, por outro. Mas talvez os anos adquiridos não sejam tão pesados e a velhice tão inócua e cruel, minha cara D. Camila. E se os românticos estiverem certos (de que ela é uma segunda infância), eu poderei retornar a tantas leituras não feitas e não “sérias” sem o compromisso com a qualidade total e sem a preocupação com as línguas alheias, em especial a dos puristas, zelosos zeladores da língua.


Marciano Lopes

2 comentários:

  1. Professor, adorei! Lendo está crônica fui lembrando da minha trajetória com leitora.

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  2. Marciano este texto me despertou uma curiosidade de ver voce quando crianca... Vc ja era um Marcianinho? Abraco.

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