Referência: Rodrigo
Garcia Lopes. Solarium, São Paulo: Iluminuras, 1994.
Solarium, primeiro livro individual de Rodrigo García Lopes, reúne
o fruto de mais de dez anos de caminhada poética, o que explica a variedade de influências e identidades literárias muitas vezes contraditórias – entre as quais se encontram poetas ingleses e americanos, incluindo a geração beatnik e
autores mais contemporâneos, como Sylvia Plath (de quem é tradutor); os
poetas fundadores da modernidade, tais como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud
(de quem também é tradutor); o concretismo brasileiro e a poesia oriental,
representada principalmente pela poética do haicai. E na alquimia
resultante de todas estas leituras, duas grandes vertentes temáticas se
sobressaem em seu livro de estréia: por um lado, uma poesia que tematiza o
caos da modernidade, trazendo à tona os conflitos e a barbárie do
mundo urbano, massificado pela tecnologia e pelo mercado; por outro, uma
poesia que recusa a massificação e o narcisismo comuns ao homem
moderno, buscando na filosofia do zen-budismo o caminho reto para a iluminação
e a ascese. Nas próprias palavras de Rodrigo Garcia Lopes (1996, p.
139-140), é possível afirmarmos que a tensão dominante em sua poética
resulta, em parte, do “diálogo entre o impulso apolínio à
forma-objeto de Mallarmé e o
impulso dionisíaco à imagem-música de Rimbaud”, nos quais se
encontram dois dos principais procedimentos (não antagônicos, em sua
opinião) da poética contemporânea.
Dioramas e Polaróides
Nas duas
primeiras partes de Solarium –
intituladas “Dioramas”
e “Polaróides” –
predomina uma poesia sintética e racionalmente elaborada que busca uma
linguagem poética autônoma, pois regida por uma sintaxe própria que
valoriza principalmente o espaço em branco da página – conforme a lição
pioneira que Mallarmé nos deu com seu poema Un
coup de dés jamais n’abolira le hasard.
Em vários poemas, como Phanums, Outro outono, Zen Breakfast
Club, Morning Glory e
Tempestade invisível, encontramos a eleição de uma sintaxe
espacial resultante de diferentes direções, sentidos e configurações
da composição tipográfica no branco da página; e associado a esse
primeiro passo rumo à desintegração do verso e da sintaxe
linear através de uma “subdivisão prismática das idéias”,
também encontramos o recurso da desintegração e do recorte das
palavras, que e. e. cummings utilizava de maneira a ampliar-lhes o potencial
significativo – conforme se vê no poema Não
minto.
O predomínio da visualidade
que estamos apontando na utilização de diversos recursos gráficos e
espaciais em substituição à linearidade discursiva também
nos remete ao concretismo, presença marcante nestas duas primeiras partes
que compõem Solarium e que encontra uma bela realização artística no
poema snow here. Nele, as letras
da palavra neve (snows) são dispostas na página de maneira a
representar visualmente o movimento de queda dos flocos de neve. À
medida que se aproximam do solo/pé da página, os flocos maiores, que são
as palavras, vão se desintegrando e assumindo novas formas-flocos que
geram novas palavras e significados, pois as letras, soltas no branco da página,
dançam um balé, ora se separando, ora se juntando, de modo a produzir
novas e conflitantes palavras e significações. Paradoxalmente, a
neve (snows) que cai agora (now), cai aqui e em algum/nenhum lugar (nowhere).
Seguindo a trilha que
privilegia a significação através da imagem em detrimento da lógica
linear, também é recorrente na poesia de Rodrigo G. Lopes o recurso ao
ideograma. Um bom exemplo é o poema peônias
negras, formado por sete haicais que, seguindo a
tradição oriental, desenvolvem seus temas a partir de imagens
da natureza. Imagens que, nesse caso, constituem metáforas da
transitoriedade da vida e das coisas:
peônias
negras
serenas
quase
secas
(...)
o inverno
furta a
flor
a cor da
fruta
(...)
a tarde
passa
arrasta e
deixa
um rastro
prata.
(peônias negras)
É importante ressaltar que
a importância dada à imagem e à utilização dos
recursos espaciais e gráficos não ocorre em detrimento da
sonoridade, pois a preocupação com a melopéia encontra-se presente
em todo o livro. Dois exemplos são os poemas Cet
obscur objet du désir e Montanhas:
no café del prado
em
barcelona
um bando
de pombas
rebolam
pelas ramblas
(Cet
obscur objet du désir)
não são nuvens
mas tão
brancas
solitárias
(mas são
tantas)
(Montanhas)
Ainda considerando a melopéia,
são dignos de nota o leminskiano tudo
tem sentido, onde o poeta joga com os diferentes sentidos da palavra
“sentido”; e os poemas você
me toca e somos, nos quais
reencontramos o tema da ausência do Eu e a conseqüente solidão
que permanece existindo, mesmo quando estamos lado a lado com alguém que
desejamos ou no meio da multidão, conforme se vê no poema
você me toca. Nele, parodiando Baudelaire, o poeta deseja uma
passante que se perde na multidão, inacessível ao seu desejo. A
diferença com o poema de Baudelaire fica por conta da mudança de tom. No
poema dele, esse é marcado pelo tormento resultante da efemeridade das relações
e pela insatisfação do desejo; no poema de Rodrigo, é marcado pela
aceitação da efemeridade e do caos da vida moderna que, ao invés de
atormentar o flaneur/vouyer,
docemente o entretém nas horas vagas. O desejo que antes expressava a angústia
da solidão e do vazio em meio ao caos e à multidão do
mundo moderno torna-se um sentimento tão passageiro e supérfluo
quanto a sedutora passante:
você me toca
você
me toca
como
quem troca
de
roupa
você
me provoca
e
troça
dessa
minha doce
distração
pra
que tanta pressa
você
mulher
na multidão?
Solarium
Na terceira parte, intitulada “Solarium”,
a busca de uma nova linguagem se faz principalmente através da vertente
dionisíaca. Diversamente do que vimos nas duas primeiras partes, o autor
deixa de privilegiar o planejamento racional e objetivo, que caracteriza o
concretismo e a poesia de Mallarmé, em favor dos impulsos e divagações,
nem sempre conscientes, que caracterizam uma dicção muito próxima
daquela que marcou a poesia de Rimbaud e da geração beatnik.
Nela, predominam longos poemas de versos livres, em que o texto,
aparentemente linear, se desenrola de modo fragmentário como em um fluxo de
consciência, sem que haja um único fio condutor do discurso e,
portanto, sem maior coesão e coerência.
A menção ao uso de drogas, como acontece no
poema Phanopium, cujo título pode ser interpretado como a aglutinação
de phanus e/ou phanopéia mais opium = ópio,
constitui um outro índice de afinidade com a poesia de Rimbaud e dos Beatniks.
Na busca de uma nova linguagem, Rodrigo Garcia Lopes procura despersonalizar
a linguagem através da negação de qualquer centro discursivo, de
modo que a representação ocorra através de uma sintaxe descontínua
e fragmentada – o que resulta em um processo esquizofrênico de
captação alegórica, sinestésica e ideogrâmica do que
costumeiramente chamamos de mundo real (o que é claramente tematizado no
metapoema Processo). Com tais procedimentos, perde-se a noção
de tempo e espaço, os sentidos se misturam e se espera que a personalidade
desapareça.
Em vários poemas desta
parte do livro, também encontramos a tematização da cidade como
caos e a negação do consumismo, da mecanização, da violência
e da exploração presentes na sociedade burguesa. A América urbana e
tecnológica, massificada e violenta, é comparada à cidade de
“Roma em chamas” (América
# 2). Nas megalópolis – representadas no poema New
York – não há mais espaço para a reflexão, o
sentimento e a utopia. Nelas, “a serpente das ruas arrasta seus ruídos,
raps & neons / devora um real que acumula seus pós / sobre nós,
camadas / de civilização sem fim e sem saída”.
Caos urbano digno do cenário
de filmes como Blade Runner, a
cidade de New York representa a demência e a desumanização de
uma sociedade regida pela racionalidade pragmática, pela idéia do
progresso material e técnico que leva o homem à escravidão
dos relógios. Nesse mundo fragmentado e sem sentido, que também
encontramos no poema “M”,
os seres humanos são reduzidos ao estado de mercadoria, cujas relações
são medidas pelo moderno desing
do corpo e pela produtividade do prazer tecnológico.
Em
busca de phanus
A
constância dos temas da dissolução da realidade e do Eu não
deve ser vista apenas como uma crítica ao padrão de vida moderno
que,
regido pela incessante produção de novas mercadorias e
valores, dissolve e pluraliza as identidades em um caleidoscópio de máscaras.
Outro importante aspecto que envolve o motivo da despersonalização
também se encontra na afirmação da primeira das quatro grandes
verdades da mundividência budista, que perpassa todo o conjunto
da obra.
Segundo a filosofia do
budismo tudo é sofrimento, pois “não há coisa alguma que não
esteja submetida a incessantes mudanças. E quanto mais o homem se esfalfa,
procurando alguma coisa permanente a qual se possa apegar neste mundo efêmero,
tanto mais sofre” (Gira, 1992:53). A verdade está no karma,
que leva o homem ao infinito ciclo de renascimentos e mortes neste
plano cósmico marcado pela imperfeição e pelo sofrimento. E outra não
parece ser a lição que encontramos em tantos poemas de Rodrigo
Garcia Lopes. A transitoriedade que marca a existência dos seres também
se estende ao Eu do indivíduo, pois para o budismo esse não possui
unidade e permanência, o que nega a idéia de uma essência
humana. Para Buda, a busca de um Eu permanente, ou seja, da realidade
interior e do Absoluto, “não era diferente da procura da Fonte
da Eterna Juventude. (...) E na mesma proporção em que um homem
gasta suas energias em uma busca dessa espécie, se afasta da possibilidade
real que teria de se libertar do samsãra”
(Gira, 1994:55). Daí resulta a constância dos temas da busca infrutífera
do Eu e da sua ausência, assim como da solidão e da estranheza
entre os seres, mesmo quando eles estão lado a lado, numa cama ou na
multidão.
(...) O
que
carregamos
são espelhos que refletem sempre
o
diferente, enquanto nós, eu e você
mudamos
juntos. Nuvens
(Outras praias).
Na caminhada em busca da
libertação, de acordo com as outras três nobres verdades, deve
o homem abrir mão dos seus desejos e ouvir o que o “(...)
outono / tem pra nos dizer: / tempo de se desfolhar / – cores, peles,
percepções”, conforme lemos em Um
poema para o deserto.
Na busca da iluminação,
deve-se renunciar ao desejo de possuir um Eu permanente através de um
comportamento reto, de uma disciplina mental em que a concentração
constitui o caminho para a “eliminação de tudo aquilo que
alimenta a ignorância do homem” (Gira, 1994:91). Daí a necessidade
de se eliminar os “cinco agregados” que constituem aquilo que
percebemos como um indivíduo: a matéria, as sensações, as percepções,
os desejos e a consciência, em suma, todos os vínculos que ligam o
homem ao mundo material. Somente assim, por esse processo de ascese e meditação,
em que “(...) é preferível / eliminar este pensamento e deixá-lo
livre” (Improvisos), é possível o encontro com a sabedoria, com a iluminação
que caracteriza o nirvãna.
É devido ao diálogo com a
filosofia do zen-budismo que encontramos constantemente, nas três
partes da obra, a presença das imagens do outono e das folhas secas que o
vento leva e que sempre se renovam, revelando em sua alegoria o eterno
movimento cíclico da vida – conforme vemos em O
eterno renovo do mesmo (poema concreto e metalingüístico pertencente a
Dioramas). Desta forma também se
explica a obsessão pelo deserto “com seus rios secos desde o
começo / com sua sede sonora / com o sal que não pergunta / do
sentido / deste paraíso perfeito”
(Um poema para o deserto) em
que não há “nenhum milagre a não ser / as coisas como são”
(Sedona), onde “tudo é phanus”
(O fotógrafo), ou seja: templo,
iluminação –
conforme o significado grego.
Como vemos, o
orientalismo e especialmente o zen-budismo atravessam o livro inteiro,
convivendo com a racionalidade ocidental – tão bem representada
por Mallarmé e pelo concretismo –, com a contracultura do movimento beatnik,
e com a fragmentação alegórica de um mundo moderno (ou pós-moderno?)
em ruínas. Em meio a este caos e à esquizofrenia geral,
fica, no fim, a sensação de que o poeta luta entre ser um zen-fotógrafo
– procurando congelar em suas iluminuras o tempo eternamente cíclico
da existência – ou então ser um câmera-zen, almejando
registrar o fluxo ininterrupto e fragmentário da existência.
Marciano
Lopes
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Referências Bibliográficas
GIRA, Dennis. Budismo:
história e doutrina. São Paulo: Vozes, 1992.
LOPES, Rodrigo Garcia;
MENDONÇA, Maurício Arruda. Iluminuras: poesia em transe. In:
Rimbaud, Arthur. Iluminuras:
Gravuras Coloridas (Tradução de Rodrigo Garcia Lopes & Maurício
Arruda Mendonça). São Paulo: Iluminuras, 1996.
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Nota:
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